Só há criatividade a partir do domínio público, da livre circulação das ideias
Direito autoral: tento não escrever essas duas palavras por aqui, para não ser acusado de colunista de um assunto só. Pouco adianta: a realidade vive me provocando com SOPAs, ACTAs e outras imbecilidades. Esses projetos de lei partem do seguinte pressuposto: a indústria da pirataria está a ponto de dominar o mundo; para combater essa ameaça, precisamos de urgentes medidas de exceção, de guerra (por isso sua propaganda tenta nos fazer acreditar que “a pirataria financia o terrorismo”). Então, por “questões de segurança nacional” ou “para salvar empregos”, governos — de forma pouco transparente — querem aprovar artifícios policialescos que podem determinar subitamente o fechamento de serviços da internet ou a prisão de pessoas, antes que tenham a possibilidade de defesa (o SOPA, por exemplo, obrigaria os acusados a recorrer em tribunais americanos, pagando os custos de advogados americanos).
Não estou aqui para defender os piratas. Sei que a pirataria, quando é pirataria mesmo, precisa ser combatida. Porém, não vejo razão para a criação dessas leis especiais para o combate, sobretudo se colocam liberdades básicas da democracia em risco.
Ninguém conhece ao certo o tamanho e o poder da pirataria. Os números que jornais favoráveis ao endurecimento das leis teimam em repetir (250 bilhões de dólares anuais! Menos 750 mil empregos!) são muito suspeitos: não se sabe de onde surgiram, em que estudos estão baseados ou qual a metodologia usada nesses estudos (geralmente financiados por órgãos da indústria que se diz vítima da pirataria). Além de declarações questionadoras como a de Neil Young (que disse esta semana que “a pirataria é onovo rádio”), tenho lido vários artigos que revelam outra situação, onde o impacto da pirataria não seria tão grande quanto afirmam os autores das novas leis ( muitas vezes atendendo apelos de quem deu dinheiro para suas eleições).
Julian Sanchez, pesquisador do Cato Institute (think tank “dedicado aos princípios de liberdade individual, governos limitados, mercados livres e paz” — portanto, nada comunista), publicou recentemente texto (http://bit.ly/yCqu7d) mostrando que, no meio da recessão atual, na verdade as indústrias de conteúdo estão bem, gerando empregos e produtos, se comparadas com outros setores econômicos. Números contra números, com várias interpretações — o que prova que nada é tão evidente assim, e não a ponto de necessitarmos de legislações draconianas para nos salvar (nós, defensores do estado de direito) de uma suposta barbárie iminente.
No lugar de gastar dinheiro (muitas vezes público) e perder sua credibilidade lutando contra o bode expiatório da pirataria (todos no fundo sabem: medidas como o SOPA não vão conseguir eliminá-lo), a indústria de conteúdo poderia trabalhar para aproveitar as enormes oportunidades que a cultura digital criou para a produção cultural planetária. A Casa Branca, quando fez manobra para se afastar do SOPA publicamente (pensando na reeleição de Obama), tentou empurrar o problema adiante, convocando o povo da internet a apresentar soluções. Nat Torkington, pioneiro da web na Nova Zelândia, respondeu, no “O’Reilly Radar”: “Inventamos a internet, a web, o MP3, o MP4, o wi-fi, o comércio eletrônico, o PayPal etc. O que mais você quer de nós? Agora é a vez de as indústrias de conteúdo gastarem alguns neurônios para continuarem relevantes no admirável mundo novo. Vão se catar!”
Mas o que as tais indústrias fazem além de nos ameaçar com prisão se continuarmos até a colocar links
em nossos blogs para sites onde pode haver pirataria? Mike Loukides, também no “O’Reilly Radar”, retrucou “Piratas são vocês, que fazem lobby fraudulento para aprovar no Congresso legislações que privatizam o domínio público, roubando benefícios que poderiam ser de todos. Muitas empresas de conteúdo degradam o domínio público, assim como siderúrgicas poluem o ar e a água, também bens comuns.” Devem ser punidas e não apoiadas com novas leis.
Em coluna sobre o sucesso de Michel Teló, escrevi que o domínio público é destino inescapável para a totalidade da criatividade humana. Isso não é novidade da cultura digital. Sempre foi assim. Só há criatividade a partir do domínio público, da livre circulação das ideias. Estou aqui inteiramente de acordo com os pensadores que criaram as primeiras legislações do direito autoral, como Thomas Jefferson, um dos pais da democracia americana. Nenhum deles equiparava bem material e bem imaterial ou achava que autores são proprietários eternos de suas criações artísticas. As criações artísticas são propriedade da Humanidade. Isso é ponto pacífico, consenso. Quando surgiu a ideia de direito autoral, a sociedade apenas concedeu, para os autores, o monopólio temporário de utilização comercial das obras de sua autoria,
tendo em vista poderem ter algum conforto material para possibilitar a criação de outras obras, que no futuro vão enriquecer o patrimônio comum.
Sempre foi assim: o monopólio de comercialização é temporário. Pois ideia é sempre criada a partir de ideias dos outros. E ideia é diferente de objeto material. Você não pode ter meu carro. Mas você pode cantar a mesma música que estou cantando, no momento em que canto essa música. Você pode me proibir de cantá-la, mas não pode apagá-la de minha memória, ou da memória coletiva. Lembre-se disso. Vou começar a próxima coluna a partir desse lugar comum.
Direito autoral: tento não escrever essas duas palavras por aqui, para não ser acusado de colunista de um assunto só. Pouco adianta: a realidade vive me provocando com SOPAs, ACTAs e outras imbecilidades. Esses projetos de lei partem do seguinte pressuposto: a indústria da pirataria está a ponto de dominar o mundo; para combater essa ameaça, precisamos de urgentes medidas de exceção, de guerra (por isso sua propaganda tenta nos fazer acreditar que “a pirataria financia o terrorismo”). Então, por “questões de segurança nacional” ou “para salvar empregos”, governos — de forma pouco transparente — querem aprovar artifícios policialescos que podem determinar subitamente o fechamento de serviços da internet ou a prisão de pessoas, antes que tenham a possibilidade de defesa (o SOPA, por exemplo, obrigaria os acusados a recorrer em tribunais americanos, pagando os custos de advogados americanos).
Não estou aqui para defender os piratas. Sei que a pirataria, quando é pirataria mesmo, precisa ser combatida. Porém, não vejo razão para a criação dessas leis especiais para o combate, sobretudo se colocam liberdades básicas da democracia em risco.
Ninguém conhece ao certo o tamanho e o poder da pirataria. Os números que jornais favoráveis ao endurecimento das leis teimam em repetir (250 bilhões de dólares anuais! Menos 750 mil empregos!) são muito suspeitos: não se sabe de onde surgiram, em que estudos estão baseados ou qual a metodologia usada nesses estudos (geralmente financiados por órgãos da indústria que se diz vítima da pirataria). Além de declarações questionadoras como a de Neil Young (que disse esta semana que “a pirataria é onovo rádio”), tenho lido vários artigos que revelam outra situação, onde o impacto da pirataria não seria tão grande quanto afirmam os autores das novas leis ( muitas vezes atendendo apelos de quem deu dinheiro para suas eleições).
Julian Sanchez, pesquisador do Cato Institute (think tank “dedicado aos princípios de liberdade individual, governos limitados, mercados livres e paz” — portanto, nada comunista), publicou recentemente texto (http://bit.ly/yCqu7d) mostrando que, no meio da recessão atual, na verdade as indústrias de conteúdo estão bem, gerando empregos e produtos, se comparadas com outros setores econômicos. Números contra números, com várias interpretações — o que prova que nada é tão evidente assim, e não a ponto de necessitarmos de legislações draconianas para nos salvar (nós, defensores do estado de direito) de uma suposta barbárie iminente.
No lugar de gastar dinheiro (muitas vezes público) e perder sua credibilidade lutando contra o bode expiatório da pirataria (todos no fundo sabem: medidas como o SOPA não vão conseguir eliminá-lo), a indústria de conteúdo poderia trabalhar para aproveitar as enormes oportunidades que a cultura digital criou para a produção cultural planetária. A Casa Branca, quando fez manobra para se afastar do SOPA publicamente (pensando na reeleição de Obama), tentou empurrar o problema adiante, convocando o povo da internet a apresentar soluções. Nat Torkington, pioneiro da web na Nova Zelândia, respondeu, no “O’Reilly Radar”: “Inventamos a internet, a web, o MP3, o MP4, o wi-fi, o comércio eletrônico, o PayPal etc. O que mais você quer de nós? Agora é a vez de as indústrias de conteúdo gastarem alguns neurônios para continuarem relevantes no admirável mundo novo. Vão se catar!”
Mas o que as tais indústrias fazem além de nos ameaçar com prisão se continuarmos até a colocar links
em nossos blogs para sites onde pode haver pirataria? Mike Loukides, também no “O’Reilly Radar”, retrucou “Piratas são vocês, que fazem lobby fraudulento para aprovar no Congresso legislações que privatizam o domínio público, roubando benefícios que poderiam ser de todos. Muitas empresas de conteúdo degradam o domínio público, assim como siderúrgicas poluem o ar e a água, também bens comuns.” Devem ser punidas e não apoiadas com novas leis.
Em coluna sobre o sucesso de Michel Teló, escrevi que o domínio público é destino inescapável para a totalidade da criatividade humana. Isso não é novidade da cultura digital. Sempre foi assim. Só há criatividade a partir do domínio público, da livre circulação das ideias. Estou aqui inteiramente de acordo com os pensadores que criaram as primeiras legislações do direito autoral, como Thomas Jefferson, um dos pais da democracia americana. Nenhum deles equiparava bem material e bem imaterial ou achava que autores são proprietários eternos de suas criações artísticas. As criações artísticas são propriedade da Humanidade. Isso é ponto pacífico, consenso. Quando surgiu a ideia de direito autoral, a sociedade apenas concedeu, para os autores, o monopólio temporário de utilização comercial das obras de sua autoria,
tendo em vista poderem ter algum conforto material para possibilitar a criação de outras obras, que no futuro vão enriquecer o patrimônio comum.
Sempre foi assim: o monopólio de comercialização é temporário. Pois ideia é sempre criada a partir de ideias dos outros. E ideia é diferente de objeto material. Você não pode ter meu carro. Mas você pode cantar a mesma música que estou cantando, no momento em que canto essa música. Você pode me proibir de cantá-la, mas não pode apagá-la de minha memória, ou da memória coletiva. Lembre-se disso. Vou começar a próxima coluna a partir desse lugar comum.
Oi,
ResponderExcluirAchei muito legal e fiz uma tradução deste artigo para o espanhol. Ligue este link: http://www.mediocerrado.com/2012/02/pirateria.html
Saudações!