28 de junho de 2012

Restabelecida na América Latina há 22 anos, democracia tropeça de Manuela Andreoni



RIO — Ela já atingiu a maioridade, mas ainda é muito jovem — 22 anos, mais precisamente. Fala espanhol, português e idiomas indígenas e coleciona tantos percalços quanto se pode esperar de sua pouca idade. A democracia na América Latina entrou de vez no continente quando o Chile, enfim, encerrou sua ditadura militar em 1990. De lá para cá, vem enfrentando provas de fogo: o narcotráfico — que aflige principalmente o México; o populismo (na Venezuela, Bolívia e Argentina); a fragilidade de suas instituições — como ficou evidente no recente impeachment-relâmpago que tirou o presidente do Paraguai do poder —; atentados contra a liberdade de expressão — mais localizados no Equador e na Venezuela —; intervenções na economia (vide as recentes estatizações na Argentina e na Bolívia); só para citar algumas mazelas. Especialistas, entretanto, apostam que o sistema terá vida longa, ainda que continue a sofrer baques e ameaças.


— Nenhuma democracia está livre de crises institucionais, por mais estável que ela seja. Nem mesmo os Estados Unidos podem dizer isso. Brasil, Chile e outros podem viver crises semelhantes. E, quanto mais cercados eles estiverem de crises deste tipo, mais é possível a contaminação. É mais difícil ser uma democracia ilhada — argumenta Marcelo Coutinho, professor de Relações Internacionais da UFRJ e do Iuperj. — No front bolivariano, os chavistas, observando esse caso do Paraguai, podem reforçar sua posição de que o que eles fazem no país é democrático.
Para Camilo Negri, pesquisador do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC) da UnB, a democracia na América Latina, de fato, permite estas brechas para ações autoritárias. Segundo ele, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, o sistema na região não foi fundamentado a partir do espirito democrático amplo, o que torna as instituições distantes da população.
— A democracia na região está em fase de consolidação aceitável. Claro que isso é relativo. É preciso considerar o traço autoritário que sempre esteve presente na história da região, e hoje isso não é diferente — aponta Negri. — É o que vimos no Paraguai, um impeachment realizado dentro da dimensão democrática, mas de cunho autoritário. As próprias ditaduras latino-americanas mantiveram algumas instituições da democracia. No Brasil, por exemplo, excetuando-se o período do AI-5, havia eleições. O conteúdo era enviesado, é claro, mas a estrutura era democrática.
Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre a região, realizado em 2004 com 19 mil pessoas em 18 países, mostrou que a preferência dos latino-americanos pela democracia é relativamente baixa. O Brasil foi citado com um Índice de Apoio à Democracia (IAD) de 1,12 — inferior à média latino-americana, que é de 2,03. Na ocasião, o país superou apenas Colômbia, Paraguai e Equador, no ranking liderado pela Costa Rica, com 7,32, e Uruguai, com 4,31. No índice, o número 5 indicaria uma sociedade muito favorável ao sistema. Já níveis abaixo de 0,15 refletiriam um ambiente desfavorável à democracia.
Grande parte da população latina dá mais valor ao desenvolvimento do que à democracia e, inclusive, retiraria seu apoio a um governo democrático se ele fosse incapaz de resolver os seus problemas econômicos, segundo o estudo. Por isso, a crise que se alastra por democracias consolidadas, como as europeias ocidentais, e poupa nações regidas pelo autoritarismo, como China e Rússia, pode levar a consequências para além da economia.
— A China tem uma dupla influência (sobre os países latino-americanos). É a maior responsável pela nossa desindustrialização e pela primazia das commodities, e também pode ser responsável por adotarmos uma segunda versão de modernidade, que combina o capitalismo com o autoritarismo. Isso também é moderno, porque o capitalismo é moderno — aponta Coutinho.
Para ele, a primeira versão de modernidade, a democracia de mercado, pode estar ameaçada. Não só pelo enfraquecimento de atores como Estados Unidos e Reino Unido. O fortalecimento dos setores primários da economia, tradicionalmente ligados a uma ala política mais conservadora, é mais um elemento a favor da volta do autoritarismo.
No Paraguai, este setor está intimamente ligado ao impeachment que derrubou Fernando Lugo. Predominantemente agrário e também parceiro da China, o país enfrenta diversos conflitos de terra — um deles, o estopim da crise que colocou o liberal Frederico Franco na presidência. Seu maior apoio veio do conservador Partido Colorado, a principal legenda de sustentação da ditadura de Alfredo Strossner (1954-1989). Líder colorado, o pecuarista Horacio Cartes é suspeito de manter ligações com o narcotráfico em seu país, como parte de um esquema de lavagem de dinheiro. Ele é o pré-candidato de seu partido às eleições de 2013, que definirão o próximo presidente paraguaio.
O cientista político da Unicamp e da USP, Leôncio Martins, acredita que esta mudança de valores na política do país vizinho foi o principal motivo para a intervenção dos países do Mercosul no Paraguai.
— O Paraguai é um país muito fraco, muito pequeno, não tem praticamente nenhuma tradição democrática. A pressão dos vizinhos vai no sentido de não aceitar o que parece ser um golpe dos conservadores. O país estava sendo chefiado por um presidente que tinha alguma aproximação ideológica com Argentina, Venezuela, Brasil... O Lugo era um “presidente de esquerda” — opina.
Em sua análise, Martins destaca que a ligação entre narcotraficantes e políticos é um dos grandes obstáculos à solidificação da democracia latino-americana, e encontra terreno fértil em países mais fracos institucionalmente. Por mais que a Colômbia tenha servido de exemplo ao bloco no combate a esses grupos, poderosos e fortemente armados, o problema hoje ameaça a democracia mexicana e cria pontos de tensão em outras regiões do bloco, como nas plantações de coca na Bolívia e mesmo nas fronteiras porosas do Brasil.
liberdade de imprensa no México foi um dos pilares da democracia mais abertamente atacados pelos narcotraficantes. Nos últimos anos, o país só fez cair no ranking da organização Repórteres Sem Fronteiras. Em 2011, figurou no 149a lugar — 13 posições a baixo do ano anterior. A causa, segundo a organização, é a violência endêmica. O país perde para a Venezuela, na 120a posição, e Brasil, na 99a. No próximo domingo, os mexicanos escolhem o novo responsável pelo combate ao narcotráfico no país nas eleições presidenciais.
A instabilidade do relacionamento da imprensa com o poder, desta vez de natureza política, também se faz presente no Equador. Uma longa batalha travada pelo presidente Rafael Correa já acarretou ações milionárias contra jornalistas e contra um dos maiores jornais do país, o “El Universo”. Correa venceu os processos, mas as sentenças nunca chegaram a ser cumpridas — ele decidiu perdoar os condenados.
Governos nacionalistas podem ser ameaça à democracia
No último episódio, Correa anunciou que passaria a controlar as entrevistas concedidas por autoridades do governo. “Por que temos que dar entrevistas? Por que nossos ministros têm que dar entrevistas à Ecuavisa, à Teleamazonas, ao “El Universo”, se são negócios privados?”, disse na ocasião.
Este é um exemplo de que não só o conservadorismo deve ser encarado como uma ameaça à democracia no continente. O mesmo pode ser dito de governos nacionalistas. Desde que chegaram ao poder na Venezuela, Bolívia, Argentina e Equador, líderes de esquerda têm investido contra multinacionais estrangeiras. As últimas nacionalizações foram empreendidas por Evo Morales e Cristina Kirchner contra a Rede Elétrica Espanhola (REE) e a YPF, respectivamente. Em nenhum dos casos houve negociação. Na Bolívia, foi o Exército quem bateu à porta da REE — como foi o caso da desapropriação da refinaria da Petrobras no país.
As ações unilaterais, para Camilo Neri, não são exclusividade da esquerda. Assim como o populismo, elas podem vir de ambos os lados. Basta que o líder em questão tenha carisma e apoio popular.
— Ideologicamente, direita e esquerda na América Latina, exceto na Venezuela, Equador e Bolívia, são muito próximas nas questões macroeconômicas. Essa nova esquerda latino-americana é de centro, na verdade. No segundo governo Lula, principalmente após o Bolsa Família, embora o eleitorado do PT tenha sido dos excluídos, o governo foi direcionado para todos os grupos sociais — lembra.
Apesar das semelhanças, os especialistas afirmam que há discrepâncias profundas entre os governos latino-americanos. Elas impossibilitariam uma volta em bloco ao autoritarismo, mas não em determinados países. Para Coutinho, Brasil, Uruguai e Chile estão praticamente blidandos a tentativas de golpe. Na outra ponta, Bolívia, Venezuela e Peru podem correr riscos.
— Peru e Bolívia são países que têm setores inteiros da sociedade excluídos do poder. Na Bolívia, o presidente Evo Morales vem sofrendo desgaste há dois anos, com muitas crises políticas e sociais. Já o Peru é o campeão de decreto de estado de exceção. Para eles, é como comprar pão — analisa.
Em ambos os países, os presidentes, assim como Lugo, vêm perdendo a popularidade do início de seus mandatos. O presidente Ollanta Humala, eleito no ano passado com uma vantagem de 2,7 pontos percentuais sobre Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, já sofre com a queda de sua popularidade e tem dificuldades no Congresso. De acordo com uma pesquia publicada no jornal “El Comercio”, a aprovação do nacionalista caiu de 49% em maio para 41% em junho, por conta de conflitos sociais no país. Evo Morales vive situação semelhante. No fim do ano passado, levantamento do instituto Ipsos mostrou que apenas 38% dos eleitores apoiam o bolivariano, eleito com 64% dos votos em 2009. Por outro lado, 53% dos eleitores o repudiam.
Eleito com 40% dos votos em 2008 em um país cujas eleições não contam com um segundo turno, Lugo não parece ter mais condições políticas de voltar ao poder. Apesar de muitos não verem o impeachment-relâmpago como um verdadeiro golpe de Estado, Coutinho defende que há motivos suficientes para os países do Mercosul estarem em alerta máximo.
— É muito grave o que está acontecendo no Paraguai. A América Latina tem passado por momentos bons e esse golpe mostra que o autoritarismo está muito mais presente em pontos da região do que pensavam (os líderes do continente) — conjectura Coutinho — Sem dúvida existem situações preocupantes. Caso elas não encontrem boas soluções, a democracia pode se encontrar ameaçada.
Está matéria foi publicada no vespertino para tablet GLOBO A MAIS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário