MÍDIA & VIOLÊNCIA
Por Luciana Andrade e Robson Sávio em 26/06/2012 na edição 700
Em um texto publicado em 1982, o antropólogo Roberto da Matta dizia: “O discurso sobre a violência é, em geral, um discurso escandaloso. Se não é denúncia, é elogio. Não pode ser um discurso interrogativo e relativizador, pois que se toma como perversão qualquer tentativa de ver a violência como fenômeno social.” Na mesma década, o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, ao comentar uma dessas pesquisas cujo resultado era favorável à pena de morte, dizia que no Brasil a pena de morte já existia, só não estava institucionalizada. Ele se referia às mortes perpetradas pela polícia. Mais de duas décadas depois, a violência homicida cresceu de forma extraordinária, em grande parte devido à forma de organização do próprio crime. Para se ter uma dimensão mais concreta, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, segundo os dados do Mapa da Violência 2012, em 1980 era de 11,7 e em 2010, 26,2. Ou seja, a taxa de risco de ser vítima de homicídio mais que duplicou nos últimos trinta anos.
Em relação às falas desses cientistas sociais, o que se percebe é a crítica ao enfrentamento da violência com mais violência. De tempos em tempos, os meios de comunicação publicam pesquisas favoráveis a pena de morte e à tortura. Esses resultados não são novidades. Eles têm menos relação com as altas taxas de crimes e mais com essa forma de pensar que Roberto da Matta desvendava no seu artigo acima citado. Qualquer tentativa de pensar a violência de forma menos escandalosa e séria é vista como perversão ou como sua defesa. É neste contexto de altas taxas de crimes e de forte sentimento de insegurança que ganham espaço nos meios de comunicação alguns comentaristas cujo principal tema é o crime mas, mais que o crime, o discurso violento sobre o crime. E, vez por outra, entram no discurso desses cronistas certos profissionais, como os que escrevem este artigo, que são chamados de defensores de bandidos quando em suas atividades profissionais procuram, como professores e pesquisadores, compreender os processos sociais que levaram o nosso o país a ser o sexto em homicídios.
Controle de faz de conta
Esse é o tema geral deste artigo, mas o que o motivou foi uma série de comentários sobre mais uma dessas pesquisas em que a pena de morte e a tortura para a obtenção de confissões era defendida pela população entrevistada. Pesquisa que, como comentado acima, deve ser relativizada ou debatida, mais do que defendida. No entanto, o que se vê por parte de alguns comentaristas e de alguns veículos de comunicação é a oportunidade para bradar por mais repressão e/ou mais violência e, de sobra, atacar sociólogos e pesquisadores como protetores de bandidos. Um problema tão sério como a perda de vidas deveria merecer um tratamento mais qualificado e digno.
Nossa longa tradição autoritária produziu instituições de controle social, como as polícias, que foram e são estimuladas a garantir a lei e a ordem a qualquer custo. Muitas vezes, na prática, isso significa fazer “aquilo que ninguém tem coragem de fazer”. Ao invés do recurso à Justiça, nos moldes dos países democráticos, aqui nossas polícias definem a fronteira cotidiana entre o legal e o ilegal. Paradoxalmente, a opinião pública é cambiante, dependendo se o castigo e a punição estão mais ou menos direcionados ao controle dos “bandidos” – palavra cada vez mais usada pela mídia para estigmatizar quaisquer indivíduos que cometem crimes, independentemente de intensidade, culpabilidade, circunstâncias etc. Interessante observar que dessa maneira a punição tem como alvo pessoas e grupos, e não os atos infracionais.
O mais dramático, nesse dantesco quadro, é que existe um pacto de silêncio e conivência, associado a um comportamento dúbio, por parte da sociedade nos seguintes moldes: às vezes exige-se da polícia um comportamento republicano e democrático (principalmente quando a ação discricionária da polícia atinge “gente de bem”). Outras vezes, discricionariamente, aceita-se como natural que essa mesma polícia faça conchavos, tome medidas extralegais para combater o crime ou não preste contas à sociedade dos atos praticados. Controle externo das organizações policiais – institucionalizado em países democráticos há décadas –, no Brasil é faz de conta.
Os “outros” se tornam ameaçadores
Para tornar a situação ainda mais caótica, a partir do consenso segundo o qual o Estado detém o monopólio do uso da força, alguns estudiosos têm defendido o argumento que aponta para uma tendência de endurecimento dos mecanismos de controle social estatais, tornando a segurança um poderoso instrumento de segregação socioespacial de imensas camadas sociais, aumentando o poder punitivo do Estado, caracterizado pelo recrudescimento legal e pelo aumento das prisões.
Como afirma Luiz Eduardo Soares, a segurança pública é a estabilização de expectativas positivas quanto à ordem e à vigência de uma sociabilidade cooperativa. Portanto, a segurança pública demanda o equilíbrio de expectativas em duas vertentes: na esfera dos fenômenos, ou seja, na redução da quantidade de práticas violentas, especialmente aquelas que se classificam como criminosas (ameaça a vida ou são letais) e também na esfera dos sentimentos e percepções, relacionadas não somente àquilo que é vivenciado pelas vítimas, mas às experiências vividas por parentes, amigos e aquelas divulgadas nos meios de comunicação social e, neste caso, impõe-se reduzir o medo, a sensação de insegurança e a instabilidade de expectativas.
Num mundo volátil e mutante, as pessoas são induzidas a um investimento naquilo que supõem controlar, tendo em vista a sua autopreservação. Para tanto, o paliativo para a insegurança é a busca por segurança que tem a ver com a integridade corporal, a defesa da propriedade e uma ideia de “comunidade” que faz do estranho o inimigo a ser evitado ou combatido. Por este motivo, as pessoas constroem muros e compram vigilância privada, já que a (segurança) pública deixa a desejar. Nesse movimento há um evidente contrassenso: ao incrementar o arsenal de segurança, há um sempre crescente sentimento de insegurança; e mais: os “outros” se tornam ameaçadores. Para eles, os outros, não há lei. Desde que sejam “os outros”, a polícia teria autorização para fazer o que quiser.
Respeito aos direitos humanos
Não é possível, racional, nem eticamente aceitável que formadores de opinião ratifiquem práticas que afrontam contra a dignidade humana. A segurança pública constitui-se como direito de cidadania, uma política fundada na observância das garantias fornecidas no âmbito do Estado de Direito, baseadas em princípios e valores que fortaleçam a segurança democrática. Para tanto, não é possível a conivência e a apologia com os vícios da desresponsabilização dos vários atores institucionais responsáveis pela política, nem com a análise simplista que ratifica práticas atentatórias aos direitos humanos.
Se a cidade que queremos é aquela em que a violência seja algo excepcional, que o patrimônio não precise ser protegido como um bunker e que os espaços públicos sejam lugares do encontro e não do medo e do abandono, não é sobre os valores da defesa da tortura e do extermínio de “bandidos” que essa cidade deve ser construída. Para essa (re)construção, os meios de comunicação devem desempenhar um papel fundamental na difusão dos valores democráticos e de exemplos de enfrentamento da violência com respeito aos direitos humanos. Discursos violentos podem, sim, aumentar os índices de audiência via defesa da barbárie, mas será esse o papel público e social dos meios de comunicação?
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[Luciana Andrade é doutora em sociologia e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas e do Observatório das Metrópoles – Núcleo Minas Gerais; Robson Sávio é doutorando em Ciências Sociais; coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública]
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