Problemas como o crescimento sem estrutura, refletido na longa greve, e críticas ao modelo pragmático de formação alimentam o debate sobre o papel e o lugar do ensino superior no século XXI.
A pressão pela democratização do acesso ao ensino superior público não é uma novidade, assim como as tentativas de respondê-la. A reforma feita pela ditadura militar em 1968, que acabou com as cátedras vitalícias e instituiu a organização por departamentos, vigente até hoje, tinha este objetivo. Na época, ficou definido que as universidades brasileiras seriam instituições de pesquisa e produção de conhecimento, o que se encaixava dentro do projeto nacionalista do governo. Este modelo prevalece até hoje e, segundo pesquisadores, exige um alto investimento do Estado para funcionar bem.
Os problemas enfrentados pelas novas universidades e campi construídos no bojo do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), lançado no segundo mandato do governo Lula, são um exemplo de que é impossível manter este projeto com poucas verbas: multiplicam-se pelo País casos de instituições onde faltam laboratórios, bibliotecas e até salas de aula, como o campus da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Guarulhos, e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Macaé. A situação precária prejudica, especialmente, estudantes de renda mais baixa, que tendem aumentar em número. Em quatro anos, todas as federais terão que destinar 50% das suas vagas para cotas.
Para Zacarias Gama, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), falta compreensão sobre o papel das instituições. "Nós temos hoje o melhor sistema universitário da América Latina. Agora, ele demanda muitos investimentos. A greve deste ano não comporta uma visão simplista. O cabo de força entre grevistas e o governo significa que há interesse em manter esse tipo de universidade que a gente tem, assentada em ensino, pesquisa e extensão. É preciso que haja condições de produzir conhecimento", afirma Gama. "A compreensão que os nossos governantes têm sobre a universidade é estreita. Para muitos, ela é sinônimo de um grande colégio, aliás, bastante problemático e reivindicador".
O "colégio", a que se refere Gama, é o entendimento de que a missão da universidade é apenas formar mão de obra. Para Roberto Leher, professor titular da Faculdade de Educação da UFRJ, há um movimento para tornar a formação dos estudantes cada vez mais pragmática e menos sofisticada, tornando-os mais operadores do que intelectuais. Esta seria uma adequação a um mercado de trabalho que tem como maioria das vagas empregos de baixa qualificação. Ele aponta como parte desta dinâmica a intensificação do trabalho docente, através do aumento do número de alunos por professor. O próprio Reuni previa que esta relação deveria ser de um para 18, semelhante às instituições particulares.
"Se compararmos com o início da década de 1990, o número de professores cresceu não mais do que 20%, enquanto o de alunos de graduação dobrou, de mestrado triplicou e de doutorado quadruplicou. Todo o sistema de avaliação também induz a um pragmatismo na formação que constrange as universidades a seguir um certo modelo de formação", diz Leher. "Este é um modelo que tem implicações para o futuro muito importantes. Qual será o futuro sem ter gerações mais qualificadas? Há grandes discussões sobre energia, agricultura, desafios que exigem conhecimento. A pergunta a ser reiterada é como vamos enfrentar os grandes problemas do país com uma universidade que está retirando a imaginação criativa dos seus estudantes".
Na tentativa de encontrar um caminho alternativo para conciliar expansão e orçamento limitado, um grupo de professores e pesquisadores capitaneados pelo ex-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Naomar de Almeida Filho, lançou em 2004 o projeto Universidade Nova. Polêmico, ele prevê que a entrada na universidade seja feita através de bacharelados interdisciplinares (BI), divididos nas grandes áreas do conhecimento. Seriam como ciclos básicos de dois anos, em que os estudantes recebem uma formação geral e escolhem disciplinas de graduações dentro da sua área de concentração. Por exemplo, um estudante que deseja fazer faculdade de Direito, entra no BI de Humanidades e já pode puxar matérias da sua formação profissional. Terminado o ciclo básico, ele pode continuar os estudos ou tentar a sorte no mercado de trabalho.
Para Almeida Filho, o modelo seria o mais adequado para atender a massa heterogênea que deixa o ensino médio atualmente. Ele afirma que o atual modelo das universidades, inspirado pela França, não compreende as deficiências de formação dos seus futuros alunos. "De certa forma, há uma nostalgia da escola pública brasileira que era para poucas pessoas. Era um modelo parecido com os dos liceus franceses, que eram muito fortes. O Estado brasileiro se dava ao luxo de pagar uma escola de qualidade para poucos. Só que a sociedade passou a demandar educação e foi impossível, com a massificação, manter o mesmo nível. No entanto, a universidade não percebeu essa mudança e manteve uma formação profissional como se ela fosse pós-liceu. É como se estivesse lá só para aprender a prática da profissão", critica.
Atualmente, 14 instituições utilizam ao menos parcialmente o modelo de bacharelados interdisciplinares. Na UFBA há uma entrada pelos bacharelados e outra pelo formato tradicional. Mas a experiência mais radical é a da Universidade Federal do ABC (UFABC), na região metropolitana de São Paulo, criada em 2005, onde a entrada dos alunos é feita 100% através dos BIs. Para o reitor Helio Waldman, as expectativas são boas, mas ainda é cedo para avaliar os resultados obtidos. Contudo, ele admite que a UFABC, apesar do caráter inovador, sofreu com problemas comuns a suas irmãs mais velhas.
"Tivemos um problema inicial de evasão muito grande, mas que conseguimos contornar. O modelo foi bem recebido. A questão é que a implantação material foi lenta, houve falta de salas de aula, professores. Talvez tivéssemos que esperar mais para começar a funcionar. Hoje temos em Santo André uma infraestrutura bastante razoável, que ainda vai melhorar bastante", diz Waldman.
O Ministério da Educação (MEC) sempre foi entusiasta do projeto Universidade Nova. Segundo Almeida Filho, o primeiro esboço do Reuni tinha, inclusive, esse nome, mas a proposta de uma reestruturação curricular mais ampla do ensino superior público não aconteceu devido a dificuldades políticas de uma reforma feita "de cima para baixo".
Apesar dos problemas, o secretário de educação superior do MEC, Amaro Lins, defende os investimentos do Reuni e ressalta que o programa incentivou a criação de novas formas de graduação. Segundo ele, os orçamentos das universidades mais que dobraram desde 2003 e, até 2010, mais de 33 mil professores foram contratados, além das 7,7 mil já autorizadas neste ano.
Leher é crítico ao projeto Universidade Nova. Na sua opinião, há um aceleramento da formação, em sintonia com o Processo de Bolonha, que reformulou os currículos na União Europeia. Pelo acordo, que já enfrenta questionamentos pelos estudantes europeus, o tempo de estudo passou a ser de três anos para graduação, dois para o mestrado e três para o doutorado. Já na avaliação de Gama, para se repensar o ensino superior no Brasil é preciso colocá-lo no papel de protagonista de um projeto nacional.
"O que precisamos é situar estrategicamente a universidade no centro de nosso projeto de desenvolvimento, com independência e sustentabilidade", defende.
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