27 de novembro de 2010

Violencia no Brasil

Mata-se mais negro que branco
 



LEIA AMANHÃ
Mãe Railda vai contar a sua iniciação no candomblé desde que, recém-nascida, tomou banho com o ouro das joias de uma africana
Fotos: Carlos Moura/CB/D.A Press - Arte: FCLopes/CB/D.A Press

Ivan* , 19 anos, cumpre medida socioeducativa no Caje
Na capital da qualidade de vida, da utopia e do poder, matam-se seis vezes mais pretos e pardos do que brancos. No macabro ranking do número de negros vítimas de homicídio no país, o Distrito Federal está em quinto lugar, atrás de Pernambuco, do Espírito Santo, de Alagoas e do Rio de Janeiro. No ranking de brancos, o DF cai para 11º lugar. Os dados constam do Mapa da Violência 2010, elaborado pelo Instituto Sangari a partir do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. A metodologia usada para a definição de cor é a declarada na Certidão de Óbito. A categoria negro é a soma dos que se declaram pretos com os que se declaram pardos. Em 2007, houve 801 homicídios no Distrito Federal, dos quais 687 vítimas eram negras e 114 brancas.
É o dado mais recente usado pelo Sangari. Números de 2002 e 2004 demonstram que não houve mudança significativa na cor da pele de quem é assassinado em Brasília. Mas, na média brasileira, observa-se uma queda no número absoluto de homicídios na população branca e de aumento na população negra , registra o Mapa da Violência. Enquanto se registrou uma queda de 24% no número de vítimas de pele alva, o número de vítimas de pele escura aumentou 12%.
O mapa reafirma a convicção de que a violência não está diretamente associada à pobreza, como se costuma acreditar. Comprovamos que não é assim , diz o diretor de pesquisa e avaliação do Instituto Sangari, Julio Jacobo Waiselfisz.
Os estados mais pobres não são os mais violentos. Mas os de maior concentração de renda, sim. O que ajuda a explicar o lugar do Distrito Federal no ranking de homicídio. Brasília tem uma esquisita convivência de riqueza e pobreza e uma segregação espacial que não acontece em outros estados , diz Jacobo. É surpreendente, porque a capital do país deveria ser exemplo de equalização de oportunidades.
Foi para ter chance na vida que Ivan* veio para Brasília aos 9 anos. Menos de dois anos depois, estava praticando furtos e roubos. Há um ano e meio, ele matou um comparsa dentro de uma igreja pentecostal em São Sebastião. Ivan cobrava do cúmplice a sua parte num assalto e como não recebeu o dinheiro o perseguiu até que o colega entrou numa porta aberta e foi morto durante o culto.
Identificado e apreendido, o garoto de 17 anos recebeu medida socioeducativa de internação de até três anos, prazo que pode ser interrompido de acordo com o comportamento e a evolução do infrator. Pela avaliação das psicólogas que o acompanham, ele tem condições de ser liberado até o fim do ano, dados os progressos na escola, no estágio, no comportamento e nas saídas eventuais. Mas essa é uma decisão que cabe à Vara da Infância e da Adolescência.
* Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para ler
A arte de construir cidadãos, as 15 lições da pedagogia do amor, de Roberto Carlos Ramos, Editora Rideel. Ex-menino de rua, com 132 fugas da antiga Febem, Ramos foi adotado por uma pedagoga francesa aos 9 anos.
Não sem muita dificuldade e muito perigo, Margherit Duvais conseguiu fazer com que o garoto negro mudasse o rumo da própria vida. Contador de histórias, escritor, palestrante, o autor adotou 13 crianças infratoras. É essa experiência que ele conta no livro.
"A escravidão já acabou"
Nasci em Ituberá, Bahia.Minha mãe é preta e meu pai é pardo. Sempre trabalhei muito, desde que meu pai descobriu que eu tinha força nos braços. Ajudava ele na pesca, derrubava e catava coco, mas meu pai era muito maldoso comigo. A gente saía para pescar de noite e, se ele me visse dormindo na canoa, ele virava ela no rio pra eu acordar. Meu pai se separou da minha mãe e ela veio para Brasília. Quando eu tinha 9 anos, ela foi me buscar, eu e minha irmã mais velha.
Sempre fui chamado de Neguinho, mas isso nunca me ofendeu. Não esquentava a cabeça. Em Brasília, fomos morar em São Sebastião, com minha mãe, meu padrasto e duas irmãs por parte de mãe. Achei a cidade boa demais, mas deu um certo medo. É grande demais, espanta um pouco. O pessoal aqui sabe conversar e eu era um pouco acanhado. Aos poucos, fui me acostumando.
Quando cheguei, fui estudar. Ia para a escola à tarde e, de manhã, engraxava sapatos na L2 Sul, perto do Mc Donald s. Gostava de ter o meu dinheiro para poder comprar o que eu quisesse. De vez em quando, ouvia alguém dizer: Sai daqui, neguinho . Direto me chamavam de neguinho e me mandavam sair de perto. Sai da frente do meu carro. Tá querendo roubar, é? . Eu ouvia aquelas coisas e não gostava.
Na minha cidade, também me chamavam de neguinho, era o jeito de falar deles. Aqui era diferente, era racismo mesmo. Aqui eu me sentia ofendido. Eu ficava a ponto de estourar, mas fazer o quê? No lugar mais humilde, as pessoas tratam você por igual, não vê diferença de cor, raça, essas coisas. Mas num lugar em que as pessoas têm um pouco mais do que as outras, aí elas se sentem no direito de chamar a pessoa de negro, de preto. Na escola aqui de Brasília, eles ensinavam sobre racismo e aí fui aprendendo.
Quando vinha para o Plano Piloto, ficava pensando que queria ter uma casa assim, um carro assim e foi quando acabei entrando no lado do crime, pra ver se poderia obter aquilo. Fui caminhando pra esse caminho [do crime] por causa dos colegas. Fui pela sensação de ter aquela adrenalina dentro de mim.
Quando comecei a aprontar tinha 11 anos e de lá pra cá só parei quando vim para o Caje. Na rua, me diziam que a pessoa que leva essa vida não para, dá um tempo. Eu ficava muito tempo só trabalhando, mas depois invernava de novo naquilo. Dava uma paradinha e começava de novo. Eu provei maconha, cocaína, crack não, e nada disso fez efeito em mim. Gostava de beber, isso eu gostava. Não usava droga, tudo o que eu fazia era na cara limpa. Os colegas eram todos drogados, mas eu não ficava doidão.
Minha mãe é negra, mas nunca conversamos sobre isso. Nunca tive muita conversa nem com ela nem com meu pai. Mas ouço ela falar quando está com raiva de alguma coisa: Fazem isso comigo porque sou negra . Ser negro é difícil, mas não é pela cor da pele, é pelo racismo.
Muita gente não tem consciência de que isso já acabou, que a escravidão já acabou.
Eu fazia assalto, mas fiz uma coisa que acabou extrapolando o limite. Foi um homicídio. Nós tínhamos roubado e o cara pegou o dinheiro e não me deu a minha parte. Aí começou a minha rivalidade com ele, fui e fiz a besteira. Eu era muito rebelde, não gostava de muita conversa, era muita raiva guardada. Se fosse pra brigar, eu ia brigar. A rua me ensinou muita coisa, mas não me ensinou 100%. Vim amadurecer aqui dentro [do Caje].
Depois que vim pra cá, faz um ano e meio, me esforcei o máximo para poder aprender bastante. Quando cheguei aqui, estava na 6ª série. Agora já estou no 1º ano [do ensino médio]. Consegui um estágio [no Tribunal de Justiça do DF] e consegui passar o final de semana com a família.
Tenho mulher e dois filhos, um menino, que é pardo, e uma menina, que é negra. Ela é muito fofa. O Caje tem muitas coisas boas [Ivan está no módulo de convivência, uma área com celas que se parecem com quartos, com cama, colchão, mesa, pátio e sala com tevê e jogos, área bem diferente das celas onde fica a maioria dos internos].
Quando vou para o estágio, tiro um peso das costas. Quando volto, o peso volta. O Caje tem muitas coisas boas, mas tem muitas coisas ruins também. Não é o peso dos monitores, é o peso do lugar.
Na vida de aprontação tem mais negro que branco. Mas eles fazem isso porque não tiveram oportunidade. Se tivessem, muitos negros estariam trabalhando. A polícia bate mais em preto. Essa coisa besta de racismo não tem razão de ser.
O racista pensa que ainda está naquele tempo passado, no tempo da escravidão.
Eu conversei muito pouco com a minha família e a única coisa que recebi foi bronca, só isso. Na rua, na aprontação, também não tem muita conversa. A gente diz que vai fazer isso, vai fazer aquilo e pronto. Vai matar, vai roubar e pronto. Aqui dentro foi que aprendi a conversar. Com você converso desse jeito que estou conversando. Lá dentro converso de outro jeito, que é o jeito deles. Se eu conversar assim desse jeito de agora lá com eles, eles vão curtir, olha o bonzinho .
Quando sair daqui, quero curtir minha família. É muito bom ficar com eles. O que quero para minha vida é seguir em frente, ter o meu trabalho. Estou me esforçando ao máximo para arranjar outro estágio quando acabar esse.
Já era a vida de crime.
O negro fica mais forte do tanto que é ofendido, fica mais forte para resistir a tudo isso.

Correio Brasiliense

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