23 de janeiro de 2012

Casamento em Mumbai - Mario Vargas Llosa


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Roberto é um peruano de Lima e Nus, uma indiana de Mumbai. Ambos estudaram nos EUA e trabalham para uma multinacional de publicidade. Eles se conheceram em Nova Délhi e se apaixonaram em Xangai, onde foram fazer uma campanha publicitária. Hoje moram em Nova York e foi lá que decidiram se casar.

A cerimônia seria celebrada em Mumbai, residência da família da noiva. Como Roberto é filho de amigos meus, Patricia e eu os acompanhamos e, conosco, uma centena de forasteiros de meio mundo, sobretudo peruanos.

O casamento e esses amores são um produto da globalização, não teriam sido possíveis anos atrás. Nus é a primeira pessoa de sua extensa linhagem que se casa por amor. Em sua família, até agora, os casamentos eram arranjados, como ainda ocorre em inúmeros lares indianos, especialmente entre famílias muçulmanas que, como os pais de Nus, pertencem à seita bohri, com 1 milhão de adeptos fiéis à tradição.

Quando Nus disse aos pais que pretendia se casar com Roberto, eles ficaram alarmados. Sua mãe propôs uma série de pretendentes, mas como a filha não deu o braço a torcer a família aceitou conhecer o exótico jovem cristão do Peru.

Roberto foi a Mumbai, passou no exame e seduziu seus futuros sogros que, finalmente, consentiram com o casamento. O enlace dura quatro dias e é um ato sutil de equilíbrio religioso, musical, sociológico, diplomático e idiossincrático.

No primeiro dia, ocorre uma cerimônia privada à qual só as famílias assistem. É assinado o contrato matrimonial e o avô de Nus a entrega simbolicamente ao noivo. Os outros três dias são de festas e jantares copiosos, com bailes, música, espetáculos e pratos que alternam a tradição e o moderno, o oriente hindu, a América gringa e hispânica e lampejos do resto do mundo.

Festa impecável. O hotel Taj Mahal Palace, que foi restaurado depois dos atentados de 2008, é o cenário da cerimônia chamada "Mehndi". Nós, convidados do sexo masculino, precisamos usar um turbante. As damas têm suas mãos e pés desenhados por artistas, delicados rendilhados que são portadores de boa sorte, feitos com henna.

As camisas tipo "guayabera" e as jaquetas se misturavam às batas e túnicas, às sandálias e às pantufas, assim como os saris delicados se mesclavam com as atrevidas minissaias ocidentais. Segundo as instruções, deve-se evitar usar roupas brancas ou negras.

Há um colorido espetáculo com bailarinas, cantores e músicos do Rajastão. São servidos pratos vegetarianos, de misteriosa elaboração, muito apimentados. O fato de não haver uma gota de álcool não é um obstáculo para os jovens aderirem às danças locais e começarem uma algaravia frenética, fazendo evoluções, rodas e um cordão em torno dos noivos, que conduzem a festa em estado de transe. Eu resisto até a meia-noite, mas a festa continua até o amanhecer.

No dia seguinte, a festividade, chamada "Sangeet", é mais informal e mais latina do que indiana. O terraço do Hotel Intercontinental, com vista para o Mar da Arábia, é transformado em esplanada caribenha e a música que invade a noite é o merengue, a cúmbia, o mambo, a guaracha, o bolero e, no fim, as indecifráveis danças modernas americanas.

Brindamos com vinho, champanhe, uísque e os indianos, em franca minoria frente aos latinos, têm a sua desforra quando os amigos e amigas dos noivos apresentam um número de dança inspirado em melodramas musicais de Bollywood, a mais fecunda produtora de filmes do mundo.

Um número divertido, cômico, simpático, que rompe com as barreiras de idioma, crenças e hábitos e envolve todos numa grande festa de sincretismo exaltado e glorioso. Quando me arrasto até o hotel, os festejos só estão começando.

A cerimônia do último dia, a "Walima", é a mais bonita e a que desperta mais atenção. Nela, não se bebe álcool nem há danças modernas. É um desfile pelas ruas e, depois, num belo jardim na orla marítima, os convidados felicitam e se despedem dos noivos, enquanto saboreiam as especialidades culinárias da comunidade bohri, preparadas pela família de Nus. As roupas indianas prevalecem e muitos estrangeiros também portam trajes típicos.

O desfile, que começa no Trident Hotel, abrange vários quarteirões. Os noivos seguem numa carruagem decorada com flores, puxada por cavalos, enquanto ao redor dela parentes e amigos cantam louvores e fazem votos de boa sorte para os recém-casados. Uma pequena orquestra com cornetas, tambores e pratos que parece ter saído de um filme de Fellini conduz o cortejo.

As pessoas nas calçadas e nos carros sorriem, saúdam, desejam felicidades e, de imediato, descubro que, aqui também, entre as belas jovens envolvidas em sedas, cavalheiros elegantes e damas com joias resplandecentes, mendigos se misturam: idosos, homens e mulheres, crianças que mal aprenderam a andar, com as mãos esticadas, ostentam seus farrapos, sua cegueira, seus membros amputados, sua magreza esquelética, seu desamparo. São a presença brutal da realidade nesse conto de fadas.

Segundo as estatísticas, a Índia, a maior democracia do mundo, está empenhada numa grande batalha contra a pobreza, crescendo há 15 anos a uma média semelhante à da China. A cada ano, milhões de pessoas saem da linha de pobreza e se inserem na pujante classe média.

Tudo isso é certo. No entanto, as estatísticas nunca dizem toda a verdade. O que ocultam (e isso vale para China, Brasil e todos os novos gigantes) é que, apesar do avanço, dezenas, talvez centenas, de milhões de indianos ficaram para trás, fustigados e sem chance de sair do inferno da miséria e da desesperança.

É isso que vêm nos lembrar os mendigos dessa fascinante e tremenda cidade, cujas ruas parecem ter saído das parábolas de Borges sobre o infinito e a vertiginosa eternidade. Eles estão por toda a parte, calados, pacíficos, terríveis.

Em Mumbai, diferentemente do que ocorre em Lima, Madri, México ou Rio de Janeiro, a pobreza e a riqueza não têm seus bairros demarcados de modo que a turba não assuste aqueles que desfrutam de uma vida digna. Não, nessa cidade, ricos e pobres se misturam de maneira inextricável. Por exemplo, o arranha-céu do multibilionário Mukesh Ambani, um dos homens mais ricos do mundo, com seus 300 aposentos, está situado num bairro onde se amontoam as famílias mais indigentes da cidade.

Roberto e Nus, claro, nesse momento não podem pensar nessas coisas tristes. Ali estão, jovens, esbeltos. Ela, belíssima em suas sedas delicadas, maquiada de modo impecável. Ele, desenvolto como se tivesse usado sempre aquela vestimenta oriental. Recebem as felicitações com alegria e esperam o momento final, dos "sapatos novos", que serão entregues pela mãe do noivo para Nus, simbolizando o fim da festa de casamento.

Serão felizes? Para se casar, eles precisaram vencer obstáculos enormes, um excelente começo. Um matrimônio feliz é uma empresa comum e exige muita dedicação, fervor, paciência e insistência, como um grande romance. Pessoas de cinco continentes e uma vintena de países vieram até Mumbai para pedir que sejam felizes. Eles não deverão nos decepcionar. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
 
É NOBEL DE LITERATURA E COLUNISTA DO 'ESTADO'

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