12 de setembro de 2014

Fazendo de conta que nada acontece, WASHINGTON NOVAES


 - O ESTADO DE S.PAULO
12 Setembro 2014 | 02h 03

Embora os programas de candidatos à Presidência da República tenham sido enviados obrigatoriamente ao Tribunal Superior Eleitoral e ali haja referências a problemas urbanos, principalmente ao déficit habitacional de 6 milhões de moradias no País (Estado, 11/7), é rarefeita e escassa a visão das grandes questões das cidades, como se o drama se limitasse à "mobilidade urbana", que foi o centro dos protestos há alguns meses.
Onde está, por exemplo, a discussão sobre a expansão urbana, que já levou a população nas cidades a 85% do total e à previsão de que em poucos anos São Paulo e Rio de Janeiro poderão formar uma megalópole de mais de 40 milhões de pessoas, mais que a população do Canadá (previsão já comentada neste espaço)? Em 1960 tínhamos apenas 45% de urbanoides e 55% das pessoas no campo. Sem políticas adequadas, chegamos aonde estamos e poderemos ter uma concentração ainda maior - embora possa haver políticas adequadas como em cidades dos Estados Unidos (Portland, por exemplo, que contém a expansão horizontal) ou do Canadá (Guelph, que refreia a expansão vertical), como já se mencionou aqui (11/7). O Brasil já tem a quarta maior população urbana do mundo - lembrou o ex-ministro Pedro Malan (Estado, 9/3). "Nosso futuro", escreveu Malan, "depende de mais clareza nessa discussão e sobre a prioridade no uso de recursos escassos. Há prioridades que estimulam maior crescimento, outras que o inibem."
Que se deve pensar, então, quando o próprio Conselho Municipal do Patrimônio Histórico está deixando de lado regras que dificultavam a construção de prédios, início de obras ou reforma, sem licença, vizinhas de bens tombados (1.º/9) em São Paulo? Segundo as notícias, oito regiões de capital paulista que estavam "congeladas" por uma lei de 1992 já podem receber empreendimentos sem autorização prévia dos órgãos estaduais e municipais de proteção do patrimônio histórico - como, por exemplo, a Praça da República ou corredores do Colégio Sion, em Higienópolis. Estará enganado o Ministério Público quando leva a Justiça a barrar um megaempreendimento às margens do Rio Pinheiros, com residências, escritórios, hotel e shopping, exatamente por causa de seus futuros impactos "ambientais" e urbanos em geral?
Tudo leva a pensar nos rumos que vamos tomando no País quando se lê, por exemplo, que Bombinhas, no litoral catarinense, aprova projeto de lei que autoriza cobrar uma "taxa de proteção ambiental" de R$ 20,53 por automóvel do milhão de visitantes que recebe a cada ano, 60 visitantes para cada um de seus 16,9 moradores permanentes (UOL, 9/9). Que pode acontecer na cidade?
Nas cidades maiores, não bastasse a ampliação populacional, a preferência agora é (Estado, 27/7) por apartamentos - 210 mil pessoas saíram de casas em São Paulo para edifícios residenciais, em cinco anos; e já são 37% do total de habitantes, que alegam como razão principal para isso a "segurança". Mas onde está essa discussão entre segurança e formatos de viver? Onde a reflexão sobre os custos gerados na cidade ao serem despejadas por veículos nas cidades 71,6 milhões de toneladas anuais de dióxido de carbono - dez vezes mais que há uma década (Estado, 1.º/9)?
E tudo se faz em meio às notícias de que a Justiça paulistana vai julgar ação popular que obriga a Prefeitura, a Eletropaulo e a Telefônica a cumprirem lei de 2005 que obriga empresas públicas e concessionárias a aterrar fios e cabos que hoje estão expostos. Em 2010 a Prefeitura paulistana dizia que sua rede subterrânea tinha 47,8 mil quilômetros das redes debaixo do solo e que o total era de 115 mil quilômetros (Estado, 24/8). As empresas dizem, agora, que cumprir a lei exigiria muitos bilhões de reais e os custos teriam de recair sobre os usuários, a não ser que houvesse isenção total de impostos (e nesse caso se transferiria o ônus para o poder público e para os cidadãos). Na gestão Kassab a estimativa do investimento necessário era de R$ 100 bilhões ("para acabar com as redes aéreas", 1.º/9); na gestão Haddad é de R$ 15 bilhões. Uma lei municipal estabelece a obrigação de sepultar 250 quilômetros anuais de fios e cabos - o que exigiria muitas décadas.
E o capítulo da drenagem, onde fica ele neste vácuo de discussões eleitorais sobre dramas urbanos? A Prefeitura de São Paulo promete aumentar em 53% a capacidade de armazenamento de água, com investimentos em barragens - hoje são retidos 4,7 milhões de metros cúbicos e se afirma ser necessário chegar a 7,2 milhões, com obras de canalização de córregos e piscinões, ao custo de R$ 4,7 bilhões, dos quais R$ 2,95 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que nos remetem mais uma vez para o plano federal (Estado, 28/8), onde nada disso se discute.
Em meio à "crise da água", também não se vê na campanha eleitoral foco nas perdas do que sai das estações de tratamento (e já teve alto custo em reservatórios, adutoras, estações de tratamento e redes de distribuição) e se esvai pelo caminho até as residências, com furos e vazamentos. São quase 40% do total da água tratada no País, inacreditáveis 73,92% perdidos em Macapá, 70,66% em Porto Velho, 62, 03% no Recife, 65,31% em Cuiabá (Estado, 6/9). Mesmo a cidade de São Paulo ainda perde cerca de 30%.
E enquanto não se discutem essas questões fundamentais na vida dos cidadãos, debate-se à exaustão quanto cresceu ou vai crescer o produto interno bruto (PIB), um conceito que - segundo André Lara Resende, um dos autores do Plano Real - já "não faz sentido, sobretudo o papel que lhe foi atribuído na segunda metade do século 20: o de aferidor de desempenho e qualidade de vida".
Tudo faz lembrar mais uma vez as palavras já transcritas aqui do então presidente da França Jacques Chirac, numa sessão solene da Cúpula do Desenvolvimento Sustentável de 2002, em Joanesburgo, promovida pela ONU: "As futuras gerações vão nos cobrar. Vocês - dirão elas - sabiam de tudo. E não fizeram nada".
*Washington Novaes é jornalista. Email: wlrnovaes@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário