O Globo, 28 de abril, 2012
Projeto da Unesco registra lugares-chaves para a memória da cultura negra brasileira
Cibelle Brito
cibelle.brito@oglobo.com.br
Na semana em que o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que as cotas para afrodescendentes e pardos nas universidades públicas são legais, o Brasil avança no resgate da história dos negros no país. O documento "Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história de africanos escravizados no Brasil" foi divulgado pela primeira vez esta semana. O texto vai compor o projeto mundial da Unesco "Rota dos Escravos, resistência, herança e liberdade". Iniciado em 1993, a proposta é dar visibilidade aos estudos e pesquisas sobre o tráfico negreiro no mundo e suas consequências para a sociedade moderna.
Apesar de o Brasil ter a segunda maior população de negros e mestiços do mundo - perdendo somente para a Nigéria - o país foi uma dos últimos membros da "Rota dos Escravos" a produzir o inventário.
- O documento traz os 100 lugares representativos da maior tragédia de mudança forçada da história - diz o antropólogo Milton Guran, representante brasileiro da "Rota de Escravos". - O inventário já foi produzido há anos por países com menos histórico de escravos negros, como o Paraguai e a Argentina.
A organização brasileira da pesquisa começou no ano passado, e ficou a cargo do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF). O objetivo do levantamento é apresentar os pontos ligados ao tráfico e à experiência histórica e cultural dos africanos no Brasil. Sob a coordenação de Guran e das historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu, grupos de pesquisas de todo o país e a sociedade civil sugeriram locais. O resultado será apresentado para o governo federal - através da Fundação Palmares e da Comissão Especial de Promoção da Igualdade (Cepi) - e, em agosto, para o diretor-executivo da "Rota dos Escravos" no mundo, Ali Moussa. A intenção, segundo Duran, é discutir o turismo da memória negra, pouco explorado no país.
Religiosidade católica e oralidade
No estado do Rio, 30 locais constam entre os 100. Para o antropólogo, o inventário poderá mudar conceitos distorcidos. A religiosidade é um exemplo. Além de áreas para o candomblé, havia espaços católicos e irmandades, como a Igreja de Santo Elesbão, na Rua da Alfândega. Segundo Guran, essenciais para legitimar os recém-chegados.
Nomes lendários da cultura negra ganham mais repercussão. É o caso de Manoel Congo, líder da maior rebelião escrava do Vale do Paraíba, ocorrida entre 1838 e 1839 na região de Paty de Alferes. Maria Conga, de Magé, é considerada uma "descoberta" pelos pesquisadores do inventário.
- Ela foi uma importante figura da primeira metade do século XIX na sua região. Uma escrava alforriada pelo seu senhor, responsável posteriormente pela criação de um refúgio para escravos, uma mulher forte e desconhecida do grande público - afirma Guran.
A região do Bracuí, em Angra dos Reis, é uma das sete praias que constam no documento. Parte dos estudos realizados no local desde a década de 90 pelo Labhoi está no filme "Passados presentes: memória negra no Sul Fluminense". O documentário faz um relato de momentos históricos contados pelos descendentes de escravos da família Souza Breves. Para as historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu a tradição oral foi crucial para resgatar as informações das primeiras gerações de escravos.
- Quando começamos a pesquisa, buscávamos os relatos pós-abolição, mas nos deparamos com narrativas riquíssimas sobre o tráfico ilegal. Além de resgatar a experiência pessoal, resgatamos o significado da escravidão aprendido com os pais - analisa Hebe.
A família Souza Breves era detentora de grande parte das terras do Sul Fluminense. Os cálculos dos pesquisadores estimam que a região do Pinheiral, no Vale do Paraíba, chegou a ter cerca de oito mil escravos.
O maior porto negreiro do mundo
Nos primeiros 30 anos do século XIX, o Rio de Janeiro abrigava o maior porto de recebimento de negros escravos do mundo: o Cais do Valongo. Redescoberto em escavações realizadas nos últimos anos, para o projeto de revitalização da zona portuária, o cais foi a principal porta de entrada dos cerca de cinco milhões de negros que chegaram no Brasil até 1831, quando o tráfico negreiro começou a ser coibido pelo Império.
Os africanos, quando chegavam vivos das embarcações, estavam fracos e magros. Havia também o temor por doenças desconhecidas entre os recém-chegados. Por isso todos permaneciam em quarentena nas proximidades do Cais do Valongo, ou na Ilha de Bom Jesus (atualmente a Ilha do Fundão). Aqueles que desembarcavam mortos eram enterrados no Cemitério dos Pretos Novos, sem qualquer registro. A venda dos novos escravos era realizada na Rua do Valongo, atual Camerino. Os escravos poderiam ser vistos em casas de zungu (espécies de refeitórios) e casas de africanos, para cultos religiosos.
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