Senzala debaixo do tapete Folha de S.Paulo, 04/06/2012
A escravidão segue mais viva e lucrativa em nosso país do que o mais ambicioso senhor de engenho poderia imaginar, no campo ou no centro de SP
"Dormíamos no chão e, às vezes, de luz acesa, para afastar os insetos. O banho era frio, e a roupa era lavada em baldes, sem sabão. Café e leite cheiravam a querosene e gasolina. Crises intestinais eram comuns entre os trabalhadores. Havia ameaças de morte."
Há uma violência latente sustentando obras públicas, empreiteiras importantes, grandes grifes e gigantes do agronegócio. A declaração acima é prova dessa exploração.
O relato foi construído com depoimentos de homens escravizados em empreendimento do programa federal Minha Casa, Minha Vida, em São José do Rio Pardo (SP). O caso, infelizmente, não é isolado. Por trás da propaganda do "novo" Brasil, há milhões de escravos.
A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do trabalho escravo, na Câmara Federal, permitindo confisco de terras de escravagistas, é uma vitória. Relatórios do Ministério do Trabalho e Emprego, dos quais a descrição acima foi retirada, comprovam, porém, que esse crime não está apenas na zona rural, mas também nas metrópoles.
Só no Estado de São Paulo, foram centenas de casos no último ano. E, pasme, isso acontece graças à omissão de alguns parlamentares.
A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa convocou a marca de roupas Zara e a Racional Engenharia para dar explicações. A primeira, sobre exploração de bolivianos; a outra, sobre condições humilhantes de trabalho. Elas são acusadas de crimes em rincões do país? Não. Em oficinas de costura no centro de São Paulo e em obra no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na avenida Paulista.
Se o trabalho escravo visa ao lucro, para combatê-lo é preciso gerar prejuízo a quem o pratica.
Por isso, apresentei um projeto que cassa o registro de ICMS da empresa que usar dessa exploração em sua cadeia produtiva e impede os seus sócios de exercerem atividade comercial por dez anos. Assim como não toleramos mais políticos "fichas sujas", não aceitamos mais ver só lindos anúncios publicitários. Queremos transparência, de fornecedores a modos de produção.
No Senado, a aprovação da PEC pode esbarrar outra vez nos ruralistas, que querem rever o conceito desse crime, ainda que relatório da ONU para Formas Contemporâneas de Escravidão confirme o artigo 149 do Código Penal: trabalho escravo é "trabalho forçado, jornada exaustiva, (...) condições degradantes e restrição (...) da locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".
Em São Paulo, propus uma CPI. Mas, mesmo com dez assinaturas além do exigido, os trabalhos não começaram. O regimento, arcaico como o Brasil Colônia, só permite cinco comissões simultâneas, número já atingido. A falta de vontade política é exasperante. Inevitável questionar quais os interesses de quem adia o combate ao trabalho escravo.
No meio da omissão, vítimas se multiplicam. A mais nova denúncia remete de novo ao Minha Casa, Minha Vida, agora em Fernandópolis (SP). Um homem morreu devido à carga de trabalho desumana.
Se nada for feito, acontecerão mais mortes, porque há trabalho escravo no megaempreendimento imobiliário, na roupa que vestimos e até no inofensivo chocolate que comemos. São 27 milhões de escravos no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Se é verdade que troncos, correntes e pelourinhos viraram história Brasil afora, também é fato que a exploração a que remetem segue mais viva e lucrativa em nosso país do que o mais ambicioso senhor de engenho nunca imaginara.
Não há nada de inocente no atraso de tantas votações importantes. Sinceramente, quem tem medo do combate ao trabalho escravo na certa também lucra com essa violência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário