A expansão foi populista. Para os médicos, somos só intrusos. O campus Guarulhos, que
nos dá vergonha, é desprezado. A consequência está nos jornais
Em 17 de agosto de 2006, uma excursão saiu de São Paulo em direção ao novo campus Guarulhos da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Éramos 30 professores.
Nem todos haviam tomado posse -eu mesmo só assinaria os papéis em outubro. Mas todos tinham sido aprovados em um concurso público muito concorrido. Parecíamos adolescentes na primeira viagem sem os pais. O clima era de festa, euforia e talvez um pouco de nervosismo.
Nunca esqueci a chegada ao campus: a visão dos monturos de aterro, dos tratores e do descampado não foi digna da ideia do que nós conhecíamos de um campus universitário. Eu me formei em dois: Universidade Federal do Pará e Unicamp. Diferentes, mas dignos do nome de campus. O incômodo era nítido, muitos não disfarçaram as impressões da primeira ida ao bairro dos Pimentas.
Não reproduzo a versão oficial (da Unifesp, MEC ou governo do PT) sobre a razão da escolha daquele lugar (ou falta dela), que desconheço. Sei apenas que era um acordo entre a prefeitura petista de Guarulhos e a reitoria. Tudo com verba do Reuni, programa de apoio a planos de expansão das universidades federais.
Hoje vejo que a tosca decisão pelo local foi política. Não havia um projeto acadêmico, se muito um projeto político-partidário populista.
O projeto acadêmico de expansão da Unifesp para as humanidades éramos nós, professores, alunos e funcionários, que deveríamos ter percebido isso há mais tempo e tomado as rédeas de nosso destino. Lamentavelmente não fizemos isso.
As consequências, incluindo a prisão de alunos, estão em todos os jornais nas últimas semanas, ainda que de modo parcial e irresponsável.
Nos primeiros contatos que tive com os colegas médicos (para quem não sabe, a Unifesp era exclusivamente médica), nunca recebi uma acolhida minimamente gentil. Sempre senti que éramos invasores de um espaço tradicional e intocável.
Mesmo que, para nós, trabalhar numa universidade de ponta em São Paulo fosse uma chance única, as conversas deixavam sempre a impressão de que a Escola Paulista de Medicina era um templo inviolável, que não passávamos de intrusos.
Isso teve momentos oficiais, como numa recepção para nós, quando um eminente médico iniciou a sessão dizendo que precisávamos saber logo que eles, médicos, tinham grande soberba, e que deveríamos aceitar isso desde o início.
Cheguei a pensar que fosse uma brincadeira, dessas que colegas fazem com outros nas empresas, um trote profissional. Ledo engano. A frase mostraria que a Unifesp não fez a menor questão de assimilar a dinâmica de trabalho dos pesquisadores das novas áreas.
Existiram casos até casos cômicos: tentei cadastrar o "1° Simpósio de Teoria Crítica da Unifesp". Ouvi: "Tão novo na Unifesp, o senhor não acha estranho organizar um evento para criticar a nossa universidade?". O evento teve de ser rebatizado: "1° Simpósio Unifesp de Teoria Crítica".
O campus Guarulhos foi tratado nesses seis anos com um constrangedor desprezo pela cúpula da Unifesp. Segue abandonado, como o conheci em 2006. Há agora apenas um novo prédio de aulas batizado apropriadamente pelos alunos de "puxadinho" e um galpão de madeira precário com o bandejão.
No campus, até recentemente invisível para a reitoria e a imprensa, hoje há seis graduações e quatro mestrados. Fruto de um trabalho docente resignado, mas consciente de sua tarefa. Em condições ideais, talvez irradiássemos algo para o entorno. Hoje a maioria sai da aula pensando em como enfrentar a Dutra.
Apesar de uma verba de milhões, até onde sabemos liberada há anos, o novo prédio nunca passa de uma maquete branquinha que adorna a entrada -sempre supostos entraves burocráticos barrando as licitações.
Quando saio do Estado, colegas de outras instituições me tratam com muito respeito. Demorei a entender. Para meu desgosto, vim a saber que isso era fruto da ideia de que éramos privilegiados por trabalhar na Unifesp, "centro de excelência". E eu invejando seus campi arborizados onde tudo funciona, até a internet...
Na minha sala, há três caixas de livros, parte de uma doação dos professores Paulo e Otília Arantes. Não temos onde colocar. Estavam ameaçados por goteiras. Dividimos o acervo nas nossas salas, sem esperança. Meu sentimento maior é vergonha.
Sempre argumentam que o campus tem uma missão: levar "civilização" para a região. Cercados pela periferia, com frequência discutimos como melhorar o transporte público para atender alunos e moradores.
Mas tomar o lugar do Estado é a função da universidade? Confesso que me sinto egoísta, mas creio que não. Nossa função deveria ser educar, algo que parece fazer pouco sentido com a intolerância que hoje domina o campus. Alunos e professores em lados opostos, como inimigos num front onde, fora os intolerantes, todos têm razão. Um entrave coletivo que semana a semana piora, de modo descontrolado. Uma ferida que não sei se vai cicatrizar.
Quem sou eu para ensinar aos médicos como fazer prognósticos, mas tenho certeza que eles sabem as consequências de um diagnóstico tardio. HENRY BURNETT, 40, doutor em filosofia pela Unicamp, é professor do campus de Guarulhos da Unifesp
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