28/08/2012 - Folha de S.Paulo
"Toda geração presente, como a nossa, ocupa o lugar daquilo que um dia foi sonhado pelos seus antepassados. Como o futuro é uma projeção, uma antecipação, cada geração presente pode dizer de si mesma: 'Nós somos o sonho deles'. No Brasil, nesse momento, isso tem um sentido particular."
A frase, da psicanalista Maria Rita Khel, integrante da Comissão da Verdade, que investiga os crimes cometidos pela ditadura, pontuou o momento mais político de sua apresentação no ciclo de palestras "O Futuro Não É Mais o que Era", na noite desta terça (28), na Academia Brasileira de Letras, no Rio.
Parte do projeto "Mutações", criado pelo filósofo e jornalista Adauto Novaes e realizado desde 2007, o ciclo acontece simultaneamente no Rio e em São Paulo (no Sesc Vila Mariana) até 11 de outubro.
"Ao ser chamada para participar da Comissão da Verdade, que pretende investigar, na medida do possível, os crimes cometidos pela ditadura contra os militantes que tentavam construir um futuro melhor, e ao voltar àquelas histórias de pessoas torturadas, mortas, desaparecidas, mudou um pouco o rumo das minhas considerações sobre o tempo", disse Khel.
Para a psicanalista, o esquecimento dessa dimensão do presente como "futuro do passado" leva a "uma irrelevância maior da vida, essa indolência do coração a que se refere Walter Benjamin, daqueles que nada esperam". Ela afirmou ainda que "dizer que nós somos o futuro deles não é uma frase nostálgica".
"Jamais poderia ser saudade daquele tempo em que se praticou terrorismo de Estado. Mas dizer isso pode nos fazer sentir uma saudade do sonho que nós representamos, e que não é apenas o sonho dessa geração tão próxima de nós, mas o da modernidade, do momento em que se pensou numa nova ordem regida por liberdade, igualdade e fraternidade. É um sonho de emancipação do homem."
PRESIDENTE
A psicanalista também citou a presidente Dilma Rousseff:
"No Brasil, este foi o sonho de uma geração da qual alguns expoentes são objeto da investigação e de reparação social pelo trabalho da Comissão da Verdade. Outros, como a presidente do Brasil, torturada, presa etc., estão no poder realizando algo do sonho da sua juventude, que ela não traiu --tanto que, quando chegou ao poder, fez questão de instalar essa comissão. Estamos muito comprometidos em resgatar o que ainda tem por se realizar do sonho dessa geração que nos sonhou."
Khel disse ser difícil determinar, com apenas três meses de trabalho, que resultados a Comissão da Verdade conseguirá, mas mostrou-se descrente quanto às chances de localizar corpos de desaparecidos.
"Posso mudar de opinião assim que surgirem outras evidências, mas não sei se será possível localizar os desaparecidos, todos ou a maioria. Porque, de fato, houve destruição de evidências. A operação limpeza, no Araguaia, aqui no Rio a fazenda Cambaíba, onde eram queimados os corpos. Houve destruições que a gente não vai conseguir recuperar, infelizmente."
Para a psicanalista, mais importante seria conseguir "desbaratar a estrutura de mando" das torturas e execuções cometidas pela ditadura. "Seria muito bom se o país conseguisse dizer 'foi assim, assim e assim, olha quem ainda está aí, olha quem ainda está em posto de poder'. Isso é mais importante. É claro que, para cada família, se a gente conseguisse os corpos seria muito importante, mas é mais difícil, talvez seja impossível."
Dentro da comissão, a área de trabalho de Khel é focada na investigação sobre mortos e desaparecidos no campo, onde, segundo ela, impera "a lei do mais forte e ponto, desde 1500". Ela terminou citando o lema do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
"Mesmo no período militar, muitos dos presos, torturados e mortos [no campo] eram pessoas que nem tinham noção de que havia uma esquerda, estavam tentando não perder sua terra, tentando que o gado do patrão não invadisse sua roça, coisas singelas assim. E eram, sempre, expulsos, presos, apanhavam da polícia."
"Como estou convencida de que quem civilizou minimamente as relações no campo no Brasil foi o MST, que organizou os camponeses para que eles pudessem se defender minimamente, eu me atrevo a terminar essa ideia de um futuro que talvez possa ser desejável com a singela palavra de ordem dos militantes do MST, que é 'reforma agrária, com justiça social e soberania popular'. Bastante simples, bastante desejável."
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