“Ela é uma sapatona muito doida”. Esta foi uma das várias frases desabonadoras e agressivas ditas por um professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Rondônia, ao ser indagado por aluna a respeito do que ele tinha achado de palestra de pesquisadora da UNB sobre aborto e igualdade de gênero. O diálogo foi gravado e rapidamente ganhou a internet e as mídias tradicionais. Deixando um pouco de lado o caso concreto, a questão levanta uma dúvida importante sobre a existência de balizas à liberdade de expressão de docentes universitários no exercício de suas funções — a chamada liberdade de cátedra. A dúvida jurídica é a seguinte: seria possível punir professores por conta do conteúdo dos seus discursos no âmbito universitário?
De um lado, há consenso de que a Universidade deve ser um espaço de elevada liberdade para o debate e a circulação de ideias. Trata-se, por excelência, do locus do pensamento crítico e da livre contestação. Afinal, o conhecimento precisa ser desafiado a todo tempo, o que só é viável quando há robusta liberdade para embates aguerridos entre convicções e visões de mundo. Os exemplos de Giordano Bruno e Galileu mostram como o silêncio imposto aos estudiosos pode dificultar o desenvolvimento científico. É preciso poder duvidar e dizer que a Terra não é o centro do universo. Daí a ideia da liberdade de cátedra como uma espécie de liberdade de expressão qualificada pela própria natureza do pensamento científico. Se assim é, seria possível limitar?
Ainda que se deva ter extremo cuidado na identificação de parâmetros ao exercício da liberdade de cátedra, eles decorrem da própria Constituição brasileira. Um exemplo é o do discurso racista, como desdobramento de decisão do STF (caso Ellwanger, de 2003). Um professor não pode defender frivolamente, mesmo em sala de aula, o esvaziamento da dignidade de seres humanos em razão de sua origem étnica. A Constituição trata o racismo como crime inafiançável e dá uma resposta firme à história de preconceito e ódio vivida pelos descendentes de africanos no Brasil.
Os casos da igualdade de gênero e das liberdades sexuais caminham em sentido próximo. O discurso de ódio relacionado a gênero e orientação sexual não se adequa ao importante sistema de igualdade criado pela Constituição. Mais que isso, a expressão de puro preconceito de gênero e de orientação sexual com o intuito exclusivo de depreciar e não de debater ideias pode ensejar responsabilização civil, administrativa e até mesmo criminal.
O problema, em muitos casos, é que nem sempre esse desígnio é evidente, o que torna difícil traçar uma linha divisória clara. A desconsideração com o método científico, a futilidade da argumentação e o tom pessoal de certas ofensas podem ser parâmetros. De todo modo, o importante é saber que a docência universitária, embora implique espaço de liberdade qualificada, não pode ser escudo intransponível para afrontar a dignidade das pessoas. Há limites para a sala de aula.
André Cyrino é professor-adjunto da Faculdade de Direito da Uerj
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