17 de julho de 2010

O quadro negro da educação



O economista Aloísio Teixeira, reitor da UFRJ, contabiliza avanços, mas ainda vê um quadro assustador nos números do ensino superior do Brasil

Há sete anos, completados no dia 1º, no comando da principal instituição de ensino federal do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o economista carioca Aloísio Teixeira contabiliza avanços, mas ainda enxerga um quadro assustador nos números do ensino superior do país.

Apenas 13% dos jovens entre 18 e 24 anos estão matriculados em faculdades, número que, segundo ele, é menos da metade da média do restante da América Latina (32%) e está a anos-luz dos 60% da Europa e dos Estados Unidos.

"Se a gente não recupera isso, estará condenando o país a não ter futuro", afirma em sua segunda entrevista ao Valor, quase sete anos depois da primeira, quando tomou posse. Ao menos na própria UFRJ, o quadro melhorou muito. Teixeira assumiu correndo ao gabinete do então ministro da Educação, Cristóvão Buarque, para pedir verba de emergência.

O orçamento da UFRJ em 2003 era de R$ 40 milhões, R$ 20 milhões dos quais para pagar a conta de luz. Neste ano ele administra uma verba orçamentária superior a R$ 200 milhões, sem contar recursos de outras origens.

Traçou um plano estratégico de dobrar o número de vagas da UFRJ em relação a 2008, de 45 mil para 90 mil (graduação e pós-graduação) até 2020, embora confesse estar atrasado em relação à meta oficial de aumentar o contingente de 2008 em 40% até 2012. Propôs ao conselho universitário da instituição uma cota de 10% das vagas oferecidas em 2011 para estudantes vindos de famílias com renda familiar per capita de até um salário mínimo. Será a cota social no lugar da cota racial, que, para ele, é trocar a parte pelo todo.

Historicamente alinhado à esquerda, segue crítico à política econômica de juros altos e câmbio valorizado do governo, mas continua sustentando que o PT, nesta eleição, continua sendo a expressão da social-democracia brasileira, em oposição à liberal-democracia do PSDB. "É claro que ouvindo certas coisas que o [José] Serra diz, parece que às vezes os papéis se trocam", afirma. A seguir, trechos da entrevista:

- Quando assumiu a reitoria, em 2003, o senhor deu uma entrevista ao "Valor" reclamando de falta de verba. Passados sete anos, o que aconteceu?

Houve uma mudança qualitativa. Quando eu assumi, o orçamento chamado de "outros custeios de capital", quer dizer, todos os recursos que a universidade recebe que não são para pagamento de pessoal, somava pouco mais de R$ 40 milhões. R$ 20 milhões desses R$ 40 milhões eram a conta de energia elétrica. Neste ano, o orçamento de "outros custeios de capital" é superior a R$ 200 milhões. É claro que não corresponde a tudo o que a universidade acha que precisa. Mas é uma situação muito mais confortável do que a que existia há sete anos. Hoje, pagamos alguma coisa como R$ 30 milhões de energia, ou seja, a relação entre a conta de energia e o orçamento mudou inteiramente. Isso nos permite planejar nossas atividades e desenvolver uma série de intervenções que antes eram impossíveis. E isso se deveu ao chamado Reuni, o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Em 2003, não tínhamos um centavo para despesas de capital e neste ano já temos alguma coisa como R$ 30 milhões, o que permite que a universidade, ela mesma, esteja investindo em novas instalações, novos equipamentos...

- Mas o Reuni, em contrapartida, estabelece metas de expansão para as universidades, o que gera mais despesas. Qual é o balanço dessa equação?

É um programa que começou em 2008 e vai até 2012. A previsão é que o número de vagas vá aumentando ano a ano até 2012. Na verdade, estamos fazendo um planejamento de mais longo prazo, até 2020. Nesse planejamento, a ideia é que o número de estudantes da UFRJ duplique, quer dizer, passe de 45 mil (35 mil de graduação e 10 mil de pós-graduação, em 2008) a alguma coisa como 90 mil, o que é um número razoável. Estabelecemos as nossas metas de crescimento até 2012 e haveria um recurso ano a ano, tanto para despesas correntes como para pessoal, o que nos tem permitido fazer concursos ano a ano para sustentar essa expansão. O quadro de professores da UFRJ havia se reduzido nos anos 90 de 3.500 para 3.100. Hoje já estamos com um quadro superior a 3.500. Fazendo um balanço realista [do Reuni], o que que aconteceu? Houve um crescimento insuficiente nos dois primeiros anos, neste ano estamos trabalhando para recuperar esse déficit de vagas oferecidas e chegar a 2011 já com superávit nas metas estabelecidas. O crescimento previsto até 2012 é da ordem de 40% do número total de vagas.

- Como o senhor analisa a política educacional do governo?

Vou falar da universidade e falar um pouco do ensino pré-universitário naquilo que tem uma relação com a universidade, por delicadeza, até pelo cargo que eu ocupo. Acho que para as universidades federais esse período foi muito importante. Não quero estabelecer uma polêmica desnecessária, mas o fato é que nos anos 90 os recursos destinados às universidades federais no Brasil caíram. Isso implicou uma dificuldade muito grande de gestão. Nesses anos do governo Lula, os recursos voltaram a crescer e já superaram o patamar onde estavam no início dos anos 90. Então, a política para a educação superior pública foi importante. Ela tem um aspecto que vale ser ressaltado porque durante muitos anos o crescimento do setor privado foi muito mais intenso do que o segmento público, aí contando não apenas as federais como as estaduais. E, por razões históricas, a maior parte da pesquisa, das atividades de pós-graduação de alta qualidade, está concentrada nas públicas. O crescimento, da forma que foi feito, implicou, na média, perda de qualidade do sistema como um todo. E o protagonismo que as universidades públicas federais recuperaram recentemente tende a fazer que essa média volte a se elevar. Qual é o problema que eu vejo? O grande problema da educação superior no Brasil é que a cobertura oferecida pelo sistema educacional é muito pequena. Hoje, apenas 13% dos jovens entre 18 e 24 anos, que é faixa etária adequada, estão matriculados em instituições de educação superior, públicas ou privadas. Desses 13%, algo entre 20% e 25% estão em instituições públicas, ou seja, no máximo pouco mais de 3% do total, estão em instituições públicas que são aquelas que têm padrões de qualidade médios superiores. Isso é muito pouco! A média da América Latina é 32%. Nos Estados Unidos e países da Europa são 60% de jovens cursando educação superior. Isso dá uma ideia da defasagem do Brasil. Se a gente não recupera isso, estará condenando o país a não ter futuro. Estou lembrando isso para falar dos problemas. Qual é o primeiro? Se todas as universidades federais cumprirem as suas metas, se o número de matrículas até 2012 houver dobrado, esse porcentual de 13% vai crescer muito pouco. Por duas razões: primeiro porque o peso das federais no conjunto é pequeno. E segundo porque o primeiro resultado dessa expansão é que estudantes que estão hoje na rede privada migrarão para a rede pública pela maior oferta de vagas. Tudo isso agravado pelo fato de que nós temos um estrangulamento no ensino médio. Tem que haver um envolvimento da universidade, já começou, mas tem que ser maior, com os níveis pré-universitários. O dado assustador é que o número de vagas que o sistema universitário oferece hoje, instituições públicas e privadas, e o número de formandos do ensino médio é da mesma ordem de grandeza. Isso é que é assustador.

- Então o famoso gargalo do vestibular não existe?

Acho que o vestibular é um mal, mas promove outro tipo de problema: uma redistribuição perversa. No caso da UFRJ, isso é muito claro: no Rio, mais de 60% dos jovens que se formam no ensino médio vêm da rede pública. No vestibular da UFRJ, 70% dos inscritos vêm da rede privada.

- Esse tipo de distribuição reacende aquela questão: é justo que esses 70% tenham ensino público gratuito?

Veja bem, o jovem na faixa etária de 18 a 24 anos está no auge do seu vigor físico e da sua capacidade de aprendizado. Quando a sociedade o retira do processo produtivo e o coloca na universidade, ela está fazendo um investimento. Eu acho que esse investimento deve ser visto como um investimento social e não como um benefício pessoal, individual. É claro que se você tem apenas 13% dos jovens na universidade, na maioria dos casos é apropriado como um benefício individual e isso se remete um pouco para o outro lado da questão, que é o seguinte: se a gente aceita isso, vai estar consolidando essa situação, que é perversa. No meu entender, universidade deveria não apenas ter o ensino gratuito como o estudante deveria receber bolsa. A sociedade paga para que ele estude e se forme e retribua a ela com trabalho de melhor qualidade no futuro. É um conceito de universidade que eu acho que é mais adequado aos nossos países. Um outro aspecto é o seguinte: se a gente tem 70% de jovens que entram para a UFRJ vindos de escolas privadas, por que não pagar? Porque a gente não quer que a universidade seja dos 70%. A gente quer que a universidade seja daqueles que se formam na rede pública e nem sequer tentam entrar na UFRJ.

- Isso remete para a discussão das cotas.

Isso remete, eu diria, para uma discussão geral de acesso às universidades e, particularmente, para uma discussão das cotas. Uma universidade como a nossa é muito cautelosa nas mudanças que faz. E por que que é cautelosa? Porque se tem a consciência de que a gente tem bons indicadores de resultados. Temos 30 programas de pós-graduação com notas máximas na Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Só uma universidade tem mais do que isso: é a USP. Mudar não pode ser alguma coisa que prejudique esse padrão de qualidade. Mas o fato é que hoje a UFRJ está envolvida em um processo de discussão intenso sobre essa questão do acesso. A reitoria apresentou uma proposta que, especificamente na questão do acesso, prevê que 50% das vagas oferecidas sejam preenchidas através do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e desse número, 20%, ou seja, 10% do total das vagas, irão para estudantes que tenham renda familiar per capita de até um salário mínimo. Essa é uma proposta que está em discussão e a ideia é que até agosto possamos ter alguma definição.

- A cota racial estaria descartada?

Sim. Eu, pessoalmente, não sou a favor da cota racial.

- O discurso da sustentabilidade é uma alternativa ao pensamento de esquerda do século XX?

Eu continuo me considerando uma pessoa de esquerda, tal como fui no século XX. Acho que essa questão da sustentabilidade, ou a questão ambiental, é um ponto a mais na agenda. Não é alguma coisa que substitua as questões da agenda social, mas é um ponto que eu acho que deve ser acrescentado. Por que não substitui? Porque acho que a gravidade dos problemas sociais da humanidade como um todo é imensa. E, obviamente, não é por políticas de sustentabilidade, de preservação do ambiente, que você vai corrigir isso. Então, acho que esses problemas continuam presentes, exigindo solução. Que risco vejo nessas questões de sustentabilidade? Exatamente isso de eles se apresentarem como substituto. Funciona um pouco, e aí eu faço a provocação, como a questão da cota racial. E eu falo da cota racial no Brasil. O grande problema da universidade são aqueles 13% de que eu falei. O grande problema da universidade é que uma parcela imensa de jovens, que são jovens majoritariamente pobres, não tem como chegar ao ensino superior. Se você dá destaque à questão racial, primeiro, você não vai estar resolvendo o problema do acesso à universidade, que vai continuar limitado a 13%, e pode estar ocultando o fato principal que a luta é por isso, é para abrir a universidade. Se todos os jovens de 18 a 24 anos estivessem na universidade, todos os jovens negros estariam.

- No começo da sua gestão o senhor fez várias críticas à política econômica, dizendo que ela era uma política de transição com risco de que fosse adotada como permanente, o que acabou acontecendo. Hoje, como o senhor avalia a política econômica do governo Lula?

Eu responderei de forma evasiva. Por quê? Eu não tenho falado de política econômica, senão por outra razão, pelo fato de que sendo reitor de uma universidade federal talvez seja indevido eu usar essa posição para falar de um assunto que não é da competência de um reitor. O que posso dizer é que, na verdade, não modifiquei em nada as opiniões que eu tinha. Acho que a política, para ser delicado, foi excessivamente tímida no que diz respeito à gestão simultânea da taxa de juros, da taxa de câmbio... Acho que não se conseguiu superar os limites do que era a política anterior. Nos beneficiamos de início de uma situação internacional extremamente favorável que fez que o ônus dessa política econômica não fosse sentido de uma forma tão intensa como fora anteriormente. E acho que aquilo que, a meu ver, era um erro, acabou sendo favorável. Na medida em que a gente manteve uma taxa de juros muito alta, quando veio a crise internacional havia um espaço enorme para contrabalançar seus efeitos.

- Como o senhor vê o paradoxo entre uma razoável produção científica nas universidades brasileiras e um mau desempenho em inovações que chegam ao mercado? O registro internacional de patentes brasileiro está perto de 10% do chinês. Como resolver?

Eu acho que há um problema, acho que melhorou, mas, se você me perguntasse por que a China registra dez vezes mais patentes do que o Brasil, eu não teria dúvidas de responder: porque as empresas da China são chinesas e as empresas do Brasil são internacionais. Isso não tem nada de xenofobia. O desenvolvimento científico e tecnológico só deu certo de fato em países que criaram vínculos orgânicos entre pesquisa básica, que em geral é feita nas universidades, pesquisa tecnológica aplicada, que é feita dentro das empresas (em parte, nas universidades) e o sistema produtivo. No caso brasileiro, historicamente, a gente tem vícios que são da universidade - universidade bacharelesca etc. etc... - e de um sistema produtivo que se constituiu em uma onda de internacionalização. As empresas de ponta no Brasil não faziam desenvolvimento dentro do país, traziam de fora. E as empresas nacionais que existiam não tinham necessidade de um desenvolvimento tecnológico porque usavam tecnologias de uso difundido. Isso criou um padrão que, mais ou menos, subsiste até hoje.

Quais foram as novidades? Bem, as empresas estatais. Esse programa de redes temáticas da Petrobras reanima, com o fato de restabelecer essa ligação [universidade-empresa]. Acho que as políticas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), da Finep [órgão do MCT], um pouco do BNDES, tendem a ajudar. Agora, acho que temos que avançar mais. É muito pouco para uma economia do tamanho da brasileira.

- Também no começo da sua gestão como reitor, o senhor disse ao "Valor" que o PT era a expressão brasileira da social-democracia, em oposição a um PSDB que estava mais vinculado às políticas liberais, ou neoliberais, do fim do século X. A eleição de 2010 traduz o mesmo quadro?

Eu digo assim, fazendo uma análise que prescinde dos personagens. Acho que o jogo de forças permanece o mesmo. A análise de que o PT é o partido da social-democracia brasileira vai além do Lula. Essa possibilidade de ter um programa reformista com intensa participação e liderança do movimento sindical, esse conjunto de coisas caracteriza um partido social-democrata. E o PT continua isso e, eu diria, vivendo todas as limitações que a social-democracia vive hoje no mundo. Por outro lado, continua no PSDB essa marca de ser uma espécie de liberal-democracia. Sem nenhuma dívida eles têm compromissos fortes com a democracia, mas caber-lhes-ia mais esse rótulo de liberal-democracia. É claro que, ouvindo certas coisas que o Serra [candidato do PSDB à Presidência da República] diz, parece que os papéis às vezes se trocam.

(Chico Santos)

(Valor Econômico, 16/7)

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