Ricardo Abramovay, economista, pós-doutor, professor titular do Departamento de Economia e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental da USP é o nosso primeiro entrevistado. Ele fala sobre sustentabilidade e a economia do século 21
Érico Hiller para Ideia Sustentável
Vanessa Brito
A sustentabilidade ainda vai causar muitas mudanças de rumo à economia do século 21. Os pequenos negócios e empreendimentos são atores cruciais para o estabelecimento deste conceito, que objetiva a harmonização entre eficiência econômica, justiça social e equilíbrio ambiental, especialmente nas atividades produtivas. Eles têm papel fundamental no processo de transformação e inovação econômica em curso. A economia movida pelos princípios da sustentabilidade, mais conhecida como economia verde, deve envolver todo o mercado e não se tornar apenas um nicho de mercado.
A baixa produção de conhecimentos acerca do uso da biodiversidade na produção de bens e serviços também abrange o enorme segmento composto por MPE e empreendedores individuais – no Brasil, eles somam mais de 6 milhões de empreendimentos, representando 99% das empresas formalizadas (Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego/Rais, 2010). A escassez desses conhecimentos não é prerrogativa brasileira, é característica da economia e sociedade contemporâneas, que dificulta a consolidação da economia verde.
As compras públicas deveriam estar mais avançadas no país, em termos de aquisição de produtos e serviços sustentáveis e certificados. Além de significar ganho de competitividade para as empresas, as certificações também representam etapa importante no processo evolutivo das relações de cooperação social.
Estas são algumas ideias e opiniões do primeiro entrevistado do site do Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), Ricardo Abramovay. Ele é economista, pós-doutor pela Fundação Nacional de Ciências Políticas de Paris, professor titular do Departamento de Economia e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental (NESA) da FEA/USP. Entre outras funções acadêmicas que exerce, destaca-se a de animador do grupo de trabalho de Sociologia Econômica da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Temas aos quais se dedica: biocombustíveis, responsabilidade social empresarial, microfinanças e desenvolvimento territorial.
CSS: A sustentabilidade está entrando na gestão dos negócios de todos os portes no Brasil. Qual é o papel das micro e pequenas empresas (MPE) na economia verde?
Abramovay: Economia verde pode ser definida por três dimensões básicas. Em primeiro lugar, está a busca por novas fontes de energia. Em segundo está o melhor uso da energia e dos materiais e a redução de todas as formas de poluição, que até aqui acompanham o aumento da riqueza. ,E em terceiro lugar, está o uso sustentável dos serviços e dos produtos da biodiversidade e, particularmente, no caso do Brasil, de nossos mais importantes biomas, os da floresta amazônica, dos cerrados, da caatinga e da Mata Atlântica.
Nos três casos, o papel potencial das micro e pequenas empresas é crucial. Quando se fala, por exemplo, em energias renováveis, a tendência é pensar o tema sob a ótica exclusiva de gigantescos investimentos feitos por corporações em energia eólica, solar, geotérmica ou biomassa. É o que tem prevalecido até aqui. Mas, como mostra o último livro de Jeremy Rifkin, A Terceira Revolução Industrial, cada casa, cada estabelecimento comercial, cada unidade de produção familiar agropecuária, pode tornar-se um fornecedor de energia, desde que façam parte de um sistema descentralizado e apoiado em redes inteligentes (smart grids).
É um caminho muito diferente daquele que consiste em conceber a transição energética apenas apoiada em grandes unidades de produção de energia renovável e que é posteriormente distribuída: micro e pequenas empresas são essenciais no processo de descentralização do uso dos recursos materiais e energéticos, uma das bases da própria sustentabilidade. E isso se aplica também aos dois outros pilares da economia verde: a redução, o reuso e a reciclagem supõem participação ativa de micro e pequenas empresas.
Quanto ao uso sustentável da biodiversidade, em vez de persistir no uso predatório dos principais biomas com exploração quase exclusiva de commodities agrícolas e minerais em larga escala (e até na exploração da madeira para lenha ou carvão), as micro e pequenas empresas têm papel fundamental na formação de iniciativas econômicas para aproveitar os potenciais bióticos locais sem destruir os ecossistemas dos quais estes recursos dependem.
CSS: A produção de conhecimento, como também de normas e procedimentos para as atividades empresariais, visam geralmente as grandes empresas. Isso se reflete também em relação aos temas que ganham força no mercado e na sociedade, como é o caso, no momento, da sustentabilidade. Qual é o motivo do desinteresse da academia e do próprio mercado em relação ao segmento dos pequenos negócios, apesar de agregar o maior número de empresas do país (99% )?
Abramovay: A precariedade da geração de conhecimentos para o uso sustentável da biodiversidade não se restringe, infelizmente, às micro e pequenas empresas, mas é um traço geral das economias e das sociedades contemporâneas. Os trabalhos da Academia Brasileira de Ciências sobre a Amazônia (dirigidos por cientistas como Carlos Nobre e Bertha Becker, entre outros) mostraram o absurdo contraste entre os potenciais econômicos e a estrutura local da produção científica.
No cerrado, ocorre o mesmo: foram desenvolvidas tecnologias para adaptar o cerrado às necessidades da produção de grãos, mas quase nada para melhor utilizar, proteger e regenerar os ecossistemas locais. Isso não se corrige de uma hora para outra. O grande obstáculo é que as oportunidades de ganho, com o que Bertha Becker chama de economia da destruição da natureza, são hoje imensas e isso acaba por inibir a formação de uma robusta economia do conhecimento da natureza.
Além disso, há uma dificuldade objetiva, no que se refere à exploração da biodiversidade com finalidades medicinais ou de produção de cosméticos: o risco empresarial é alto, o que tende a inibir arranjos produtivos em que os produtores locais sejam beneficiados. De maneira geral, mesmo que haja avanços em áreas importantes e tópicas (plástico verde, biocombustíveis), a verdade é que o sistema de inovação industrial brasileiro é marcado fundamentalmente por uma mentalidade típica do Século 20 em que o mais importante é aumentar a produtividade do capital e do trabalho.
Nós ainda estamos muito aquém da formulação de sistemas de inovação voltados para a sustentabilidade e isso não é específico às micro e pequenas empresas. Isso se refere, por exemplo, à maneira como produzimos nosso principal meio de transporte (o carro individual emblema do que há de menos sustentável no mundo moderno) e como planejamos nossas cidades em função muito mais dos automóveis do que das pessoas. Cidades humanas são aquelas com tecidos econômicos descentralizados em que parte da vida social se faz com base em pequenos negócios locais e não na concentração crescente do comércio atacadista.
CSS: Quais são os desafios para as MPE ingressarem na economia verde?
Abramovay: O principal desafio é que a redução no uso de materiais, de energia e de diferentes formas de poluição não seja o movimento virtuoso de um empresário, que consegue transformar este trunfo em vantagem competitiva. Claro que estas iniciativas individuais são importantes e podem inspirar, por seu sucesso, o que fazem os outros. O fundamental, entretanto, é que todos os atores sociais incorporem a realidade de que o sistema econômico já ultrapassou fronteiras além das quais a vida social está seriamente ameaçada.
Isso já está acontecendo no que se refere às mudanças climáticas, à biodiversidade e ao ciclo do nitrogênio, segundo um estudo recente publicado pela revista Nature. E, além dessas três dimensões, há outras seis em que os perigos são imensos: ciclo do fósforo, ozônio, acidificação dos oceanos, oferta de água doce, usos do solos, materiais particulados no ar e poluição química.
A consultoria global KPGM lançou em fevereiro um trabalho mostrando que 50% dos ganhos das três mil maiores empresas globais correspondem, na verdade, a custos ambientais, que não entram nos preços. É uma renda que vem não da inteligência ou da criatividade, mas da destruição, de matar a galinha dos ovos de ouro.
O movimento na direção contrária a esta já começou e a ecoeficiência tornou-se muito mais presente na vida das empresas do que vinte anos atrás. O grande problema é que o avanço da ecoeficiência é insuficiente para enfrentar o aumento espetacular da produção global e, com ela, da pressão sobre os ecossistemas.
Organizações como o Sebrae são fundamentais para orientar o uso dos recursos numa direção diferente da atual. Mas isso vai muito além de educação e mexe com interesses: nem sempre a transição para técnicas mais racionais é economicamente interessante; nós vivemos num mundo em que, infelizmente, destruir ainda dá lucro, muito lucro.
CSS: O número de consumidores responsáveis, que dão preferência a produtos e serviços de empresas comprometidas com a sustentabilidade, cresce em todas as regiões.Como as políticas públicas poderiam estimular a formação do mercado interno sustentável brasileiro?
Abramovay: Um caminho nesta direção é fazer uma contabilidade material e energética transparente e um rastreamento sério daquilo que se produz e se consome. As sociedades contemporâneas sabem, ao final de cada ano, quanto vale (em reais, dólares, euros ou Yuan) o que produziram, mas não há qualquer informação agregada sobre como foram usados os recursos para chegar a esta produção. Isso envolve mudanças na estrutura de custos das empresas.
Compras públicas de produtos certificados são um caminho que já deveria estar bem mais avançado do que está. Da mesma forma, as mesas redondas para produtos como soja, biocombustíveis, e o início de rastreamento na cadeia de carnes são passos positivos. As próprias empresas de fast food já se comprometeram, nos EUA, a não comprar produtos vindos de fazendas, onde há crueldade contra animais. É o caso da criação de porcos ou aves em jaulas, onde mal podem se mexer, por exemplo. É vergonhoso que isso ainda ocorra, mas não deixa de ser um progresso o compromisso recente de que estas práticas sejam interrompidas. Seria muito importante que isso se tornasse um padrão global.
Relaxar critérios socioambientais sob o argumento de que este tipo de exigência pode encobrir interesses protecionistas de países ricos é de uma miopia impressionante. Sustentabilidade é uma noção que não pode aplicar-se apenas ao produto: no limite, podem-se fabricar armamentos de maneira supostamente sustentável e até receber certificação por isso. Nosso desafio é discutir o próprio sentido social, as finalidades daquilo que se produz. Esta é a base para que se possam estabelecer limites ao uso de recursos, com base em sua real utilidade para a vida social.
CSS: Sabemos que o Governo (nos três níveis) é o maior comprador de produtos e serviços. Temos verificado que nos editais de compras são colocadas várias exigências com o objetivo de obrigar os fornecedores da iniciativa privada a estarem com as obrigações fiscais e trabalhistas em dia. Não seria o caso de o Governo dar o exemplo e colocar pré-condições nos editais para os fornecedores, bem como para os responsáveis pelas comissões de licitação, visando priorizar empresas praticantes dos princípios da sustentabilidade?
Abramovay: Em alguns estados isso já acontece, mas até aqui os resultados não parecem muito promissores. Na verdade, não conheço estudos que tenham avaliado políticas nesta direção, preconizada pelos mais importantes documentos da Rio+20 e está explicitamente mencionada no documento de base da reunião, bem como na contribuição brasileira.
CSS: Quais as macropolíticas que deveriam ser adotadas para aumentar a competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional?
Abramovay: O mais importante é que o Brasil se afirme como país, cujos produtos representam capacidade e inteligência no uso sustentável e na regeneração da biodiversidade. Ou seja, o contrário do que ocorre hoje não só com o Brasil, mas com a América Latina e a África. São os dois continentes, cuja biocapacidade ainda é superior a sua pegada ecológica. Os recursos disponíveis ainda superam aquilo, que se extrai de seus ecossistemas.
Só que, sobretudo nos últimos anos, em vez de o Brasil e a América Latina se converterem em líderes na economia da inteligência e da informação, e usar esta inteligência e esta informação como forma de valorizar produtos e serviços da biodiversidade, nós estamos nos especializando na exportação de commodities minerais e agrícolas. A consequência é o que um estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da Rede Mercosul, publicado em 2011 como parte da preparação da Rio+20, chama de reprimarização das economias latino-americanas, como uma das causas do preocupante processo de desindustrialização pelo qual passam alguns países do Continente, a começar pelo Brasil.
Não se trata de renunciar às exportações agrícolas e minerais. É positivo o movimento para que estas atividades sejam menos predatórias do que no passado. Mas nós estamos muito distantes do que é mais promissor na economia do Século XXI: o conhecimento, a informação e a aplicação deste potencial para a exploração sustentável da biodiversidade.
É certamente positivo o movimento, que permitiu reduzir a pobreza e, em certa medida, a desigualdade de renda no País, nos últimos dez anos. Mas é preocupante que este movimento não seja acompanhado por transformações na estrutura produtiva, que aponte em direção à economia do conhecimento e que sejamos cada vez mais dependentes de commodities agrícolas e minerais.
CSS: Os processos de certificação em sustentabilidade envolvem custos, vistorias, adequações do negócio, análise documental, etc. Para os pequenos negócios, as etapas de uma certificação podem se tornar um calvário e muitos empresários desistem no meio do caminho. Não seria bom desenvolver metodologias específicas para certificar mpe? As certificações beneficiam os pequenos empreendimentos assim como ocorre com as grandes empresas?
Abramovay: O mais importante é que a certificação entre na era da informação em rede e possa beneficiar-se do imenso avanço representado pelos dispositivos poderosos, baratos e funcionando em redes, que hoje podem favorecer os processos cooperativos. Certificação pode ser vista como trunfo concorrencial, mas também como expressão de avanço na própria cooperação social.
Há formas de certificação que podem passar não tanto por especialistas altamente qualificados e caros, mas por redes de interação social apoiadas no interconhecimento das pessoas e capazes de produzir as informações e os conhecimentos para saber se tal produto é conveniente e, sobretudo, que possam auxiliar na aprendizagem de métodos produtivos mais adequados e na oferta de bens e serviços mais úteis para as pessoas.
Certificação não pode ser reserva de mercado para patrocinar e favorecer a concentração da vida econômica. Ao contrário, ela tem que ser um meio de permitir a evolução, a melhoria, os ganhos em conhecimentos e o fortalecimento das redes em que as empresas estão inseridas.
CSS: Como o sistema financeiro público e privado poderia apoiar as micro e pequenas empresas na adesão à economia verde?
Abramovay: A economia verde não pode ser um nicho, um setor, algo do qual as empresas optam por participar ou não. O princípio, segundo o qual é necessário produzir usando, ao máximo, fontes renováveis de energia, empregando cada vez menos materiais e menos energia e estabelecendo uma relação regenerativa com a biodiversidade, tem que nortear toda a economia, do horticultor orgânico ao cabeleireiro, passando pelo taxista e pelo chaveiro.
O papel do sistema financeiro, neste sentido é crucial. Hoje algumas instituições financeiras condicionam seus grandes empréstimos a cláusulas de comportamento socioambiental. Mas, em algum momento, os próprios bancos terão de repensar seu papel no agravamento dos problemas urbanos, decorrente do fato de que o financiamento ao automóvel individual (cada vez mais o avesso da mobilidade) é parte importante de sua carteira.
É importante ampliar estas exigências (que hoje só existem para empréstimos relativamente grandes) de forma a sinalizar ao conjunto da sociedade, que os recursos dos quais depende a reprodução social, são escassos e que, portanto, seu uso inadequado não pode ser absolutamente admitido, seja qual for o tamanho do empreendimento em questão. Isso não pode ser, é claro, pretexto para marginalizar iniciativas de pequeno porte ou vindas da economia popular. Tampouco é algo que se pode exigir isoladamente de cada empresário.
Não é justo esperar que um taxista deixe de usar gasolina no carro, se a relação de preço com o álcool não favorece o combustível renovável. O que não dá é falar em cidades sustentáveis e ter como horizonte ampliar a produção de automóveis de quatro para seis milhões e, depois, pedir para o taxista ou o cidadão proprietário de carro, individualmente, que não contribua para o aquecimento global.
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