2 de abril de 2012

Miriam Leitão: Encontro adiado (Comissão da verdade)



COLUNA NO GLOBO


Parece uma maluquice que, quase 50 anos depois do golpe militar que fechou o Congresso, suspendeu direitos constitucionais, prendeu, cassou, exilou, torturou, matou e ocultou cadáveres, ainda seja preciso explicar que isso não se comemora. Nas divergências dos últimos dias o país mostrou os equívocos nascidos do silêncio. A democracia confundiu não punir com não saber. Assim, adiou um encontro inevitável.
Não foi a Comissão da Verdade que trouxe um conflito velho de volta à mesa. Ele sempre existiu, e se nunca apareceu foi pela antiga mania nacional de achar que o melhor caminho para evitar uma fratura é fingir que ela não existe. A questão jurídica que fique entregue à Justiça; outra completamente diferente é a busca dos fatos e circunstâncias das mortes de pessoas que estavam nas mãos do Estado.
Rubens Paiva desapareceu quando estava dentro de instalações do I Exército, no Rio; Vladimir Herzog foi morto quando estava dentro do II Exército, em São Paulo. Passaram-se 41 anos do primeiro fato; 36 anos do segundo fato. A ditadura acabou há 27 anos. O país ainda não encontrou tempo para repor os fatos históricos, corrigir versões canhestras dadas à época, quando a imprensa foi silenciada, e de fazer uma reflexão madura sobre esses, e tantos outros, fatos trágicos.
Congelado pelo silêncio, o debate voltou como se o Brasil tivesse entrado num túnel do tempo. Uma discussão que não ocorre no momento certo não se desenvolve e, portanto, não pode ser superada. É espantoso que o Brasil tenha tentado contornar por tanto tempo o incontornável trabalho de entender cada um dos inúmeros eventos sobre os quais a ditadura impôs sua versão, omitiu fatos e ocultou documentos.
Que os militares da reserva se reúnam num clube com suas ideias emboloradas e as exponham para sua plateia de convertidos, ou comprometidos, é exercício da democracia e da liberdade de expressão que negaram ao país nas duas décadas que o governaram. O que está errado não é que eles em seus pijamas mantenham suas convicções. O erro é que os que na democracia têm comandado as Forças Armadas permanecem com a mesma versão delirante dos fatos e a transmitem aos seus subordinados numa reprodução inaceitável de um conjunto de valores perigoso para a democracia.
O silêncio de quem está com a farda não engana ninguém. Assim que se aposentam, usam a liberdade que recebem para expor as mesmas velhas ideias. Nunca houve autocrítica. Não é um clube de velhinhos de um lado e um Exército atualizado do outro. Quando o assunto é o que houve entre 1964 e 1985, jovens oficiais, que nada têm a ver com aquele tempo, estão sendo ensinados que as Forças Armadas livraram o Brasil de perigos e não cometeram erros.
O que leva jovens militantes para a porta do Clube Militar é o acinte de tantos anos depois ainda comemorarem o que deveria ser repudiado. Os militares da ativa durante anos na democracia celebraram a data de 31 de março dentro dos quartéis e não foram impedidos. Deveriam ter sido impedidos de fazerem isso há mais tempo. A celebração de qualquer fato histórico é um momento de renovação e afirmação de um conjunto de valores e convicções. Nesse caso, o que estava sendo celebrado e confirmado foi o que produziu uma tragédia no país. Não se conserta cabeça torta dos militares formados na lógica daquele tempo, mas a democracia deveria ter impedido, há mais tempo, que dentro das Forças Armadas esses mesmos pensamentos fossem impunemente reproduzidos.
Os comandantes têm repetido aos seus comandados a sua versão da história. Por serem instituições hierarquizadas, não são contestados. Essa versão continua sendo apresentada como verdade nos cursos internos das escolas de comando. Ensinam aos jovens nos colégios militares os mesmos disparates.
Quando os governos civis fingiram que não viam as celebrações — em nome de não reabrir um velho conflito — estavam permitindo que novas gerações fossem formadas na convicção de que as Forças Armadas estavam certas quando assaltaram o poder em 1964. Para uma república tantas vezes interrompida por surtos autoritários é uma displicência inaceitável. A omissão dos governos democráticos atrasou avanços institucionais e a integral submissão dos militares ao poder civil.
Manter comemorações, explícitas ou veladas dentro dos quartéis, equivale a permitir nos Estados Unidos a defesa dentro do governo da política de segregação racial; ou na África do Sul a defesa do Apartheid; ou na Alemanha os ideais do nazismo. Pode haver nos Estados Unidos, África do Sul ou Alemanha quem defenda essas aberrações. Mas nenhum desses três países admitiria que esses ideias fossem defendidos dentro de órgãos governamentais.
É bem possível que a Comissão da Verdade não chegue aos fatos, que documentos destruídos ou levados para as suas casas pelos militares envolvidos nos crimes cometidos pela ditadura nunca apareçam. Mas o Congresso decidiu que a Comissão fosse criada e ela precisa fazer seu trabalho. Não é instância de punição. É de busca da informação. Se isso reabre velhas feridas, produz conflitos no Centro do Rio, troca de farpas em artigos de jornal não é problema com o qual seus integrantes devam se preocupar. Ainda que tarde o Brasil busca informações. E o país não pode se constranger nesse esforço. O silêncio nunca foi o melhor remédio para as divergências. O debate amadurece convicções e permite a superação dos traumas nacionais.

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