23 de dezembro de 2012

Violencia no Brasil? :Quatro Newtowns por dia


Estado de S.Paulo, 23/12/2012

Em 2010, número de mortes com armas de fogo no Brasil foi de 36,7 mil - ou 19,3 pessoas em cada 100 mil
JULIO JACOBO WAISELFISZ

De tempos em tempos ressurge a discussão sobre o controle das armas de fogo. E ressurge em momentos dramáticos: quando uma chacina perpetrada por um civil com uso ostensivo de armas de fogo irrompe na consciência da população quebrando a aparente naturalidade de violência estimulada pela circulação e/ou utilização das armas em nosso cotidiano. Foi assim no massacre da escola Tasso de Oliveira, no Realengo, Rio, em abril de 2011, quando foram assassinados 12 adolescentes. Ou na recente tragédia de Newtown, Connecticut, com 20 alunos e 6 adultos massacrados. Ou ainda outras.
Mas, no meio dessa discussão, convém ter em conta alguns dados fundamentais do Brasil. Um estudo realizado pelo Iser/Viva Rio estima que no País existam 15,2 milhões de armas de fogo em mãos privadas: 6,8 milhões registradas e 8,5 milhões não registradas, 3,8 milhões em mãos criminosas.
Esse robusto arsenal guarda correspondência com a mortalidade que origina. Os registros do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde permitem verificar que, entre 1980 e 2010, 741.771 cidadãos morreram por disparos de algum tipo de arma de fogo efetuado por outrem com a intenção de matar. Cifra bem superior às de muitos conflitos bélicos no mundo.
Em 1980, as vitimas foram 7.436. Em 2010, 36.792: um aumento de 395%. Nesse período as taxas de homicídio por armas de fogo passaram de 6,2 por 100 mil habitantes em 1980 para 19,3/100 mil em 2010.
A gravidade desses números fica evidenciada se considerarmos que os 36.792 assassinatos em 2010 representam:
Quatro chacinas de Newtown todos os dias do ano.
Quase um massacre do Carandiru - de 1996, quando morreram 111 detentos - a cada dia do ano.
O maior quantitativo de mortes por armas de fogo registradas no mundo nos últimos anos e um dos cinco maiores do planeta em termos de taxas, segundo os registros do Whosis, sistema de estatísticas da OMS.
Por esses dados, nossas taxas resultam 193 vezes maiores que as da Coreia do Sul ou Hong Kong, 20 ou mais vezes maiores que as de países como Holanda, Espanha Polônia, Inglaterra, Escócia, etc.
A evolução ao longo das três últimas décadas não foi homogênea. Entre 1980 e 2003 o crescimento foi acelerado e sistemático: 5% ao ano. Depois do pico de 37,6 mil mortes em 2003, os números em um primeiro momento caíram para 34,5 mil, para depois ficar oscilando na faixa de 36 mil mortes anuais. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento pareceriam ser fatores de peso na explicação dessa mudança a partir de 2003: foi sofreado o crescimento acelerado da mortalidade por armas de fogo, mas não foi suficiente para reverter o quadro. E quem são essas vítimas?
95% dos assassinados são homens.
Apesar de representar só 27% do total da população, a faixa de 15 a 29 anos de idade concentra quase 60% do total de assassinatos com armas de fogo. Dessa forma, se a taxa total para o País em 2010 foi 19,3/100 mil, a taxa de jovens foi de 42,6/100 mil. Mais do dobro.
Pelos quantitativos de população por raça/ cor registrados pelo Censo de 2010, teríamos as seguintes taxas de mortes por armas de fogo:
Brancos: 11,1 em 100 mil.
Negros: 25,8 em 100 mil.
Amarelos: 1,7 em 100 mil.
Indígenas: 5,5 em 100 mil.
Vemos assim que nossos personagens, como nas tragédias gregas, são bem definidos: jovens, negros, do sexo masculino, de baixo nível socioeconômico e educacional e com escassas vias de acesso a benefícios sociais que poderíamos considerar básicos: educação, renda, trabalho, saúde, etc. E o que agrava o problema?
Facilidade de acesso a armas de fogo. Apesar das penalidades do Estatuto do Desarmamento, continua sendo relativamente fácil adquirir armas no mercado ilegal.
Cultura da violência. Em novembro, o Conselho Nacional do Ministério Público divulgou, para sua campanha "Conte até 10", um estudo sobre a proporção de inquéritos policiais de assassinatos por motivos fúteis/ impulso (briga familiar, discussão de trânsito, intolerância religiosa, Lei Maria da Penha, etc.). Concluiu que, dependendo do Estado, entre 20% e 100% dos homicídios foram crimes de impulso ou por motivos fúteis. Essa comprovação permite, com outras evidências existentes, questionar a visão de que a violência homicida é explicada pelas drogas ou pelas grandes organizações criminosas. Sem negar a violência associada às organizações, as evidências apontam que a maior parte é crime de proximidade, em que um familiar, amigo, vizinho empunha uma arma por motivos banais e resolve a situação conflitiva mediante o extermínio do próximo.
Tolerância Institucional. Existem diversos mecanismos pelos quais as institui- ções que deveriam zelar pela segurança e cumprimento das leis toleram doses relativamente elevadas de violência. Sem esgotar esses mecanismos, um dos mais frequentes é a transformação das vítimas em culpados. Meninos do crack, da rua, viciados, mulheres "que provocam, se vestem como vadias", etc., são uma adjetivação que parece justificar a violência e a morte.
Impunidade. Relatório da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, A Impunidade como Alvo, divulgado em junho, refere-se à meta de concluir 134.944 inquéritos de homicídios dormindo nas delegacias até 2007. Num esforço conjugado e focalizado, reunindo diversos aparelhos, conseguiuse finalizar os inquéritos e levar 8.287 denúncias à Justiça - 6,1% do total inicial. Considerando-se outras "perdas" - nem toda ocorrência de homicídio se transforma em inquérito policial e nem toda denúncia é acatada pela Justiça e/ou os indiciados são condenados -, teríamos que, no País, em torno de 4% dos homicidas vão para cadeia.
Concordamos com a ideia de que não são as armas que matam. Matam os homens que empunham as armas. Mas as facilidades de acesso e posse, a cultura da violência, a tolerância institucional e a impunidade existentes compõem uma mistura explosiva, cujos resultados são os níveis insuportáveis de violência que devemos enfrentar.
JULIO JACOBO WAISELFISZ É COORDENADOR DA ÁREA DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA FLACSO (FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS) E PESQUISADOR DO CEBELA (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS)

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