Dorrit Harazim, O Globo
Pontualmente às 9h30 da manhã da sexta-feira passada os sinos tocaram 26 vezes. Em compasso lento, de pranto nacional, igrejas de todo o país sinalizaram a memória dos mortos fuzilados uma semana antes, à mesma hora, numa escola da Costa Leste dos Estados Unidos.
Na Casa Branca, o minuto de silêncio foi observado em privado pelo presidente Barack Obama.
Em Connecticut, estado em que ocorreu a matança, o governador Dannel Malley e dignitários se alinharam na escadaria da sede do governo, apesar da forte chuva, e permaneceram em silêncio por 10 eternos minutos.
Na pequena Newtown de 27 mil habitantes, onde a população adulta tem comparecido a 3 ou 4 serviços fúnebres diários para honrar as 20 crianças e 6 adultos fuzilados na escola, o silêncio e as 26 badaladas ajudaram a interromper a tétrica rotina.
As árvores plantadas em frente ao batalhão do Corpo de Bombeiros da cidade são 26. São “2” e “6” os números estampados em dois imensos balões atrelados às extremidades da ponte da cidade.
Todas as faixas, desenhos, mensagens, velas, bichos de pelúcia, buquês de flores que brotaram em Newtown honram os “26 anjos que nos guiarão”. Essas 20 crianças e 6 adultos viverão para sempre na memória local.
Só que foram 27 os fuzilados pelo jovem Adam Lanza, de 20 anos. Sua primeira vítima daquela tenebrosa sexta-feira 13 de dezembro foi a própria mãe, morta em casa com quatro tiros de rifle calibre .22 na cabeça.
Só depois o surtado Adam rumou para a escola fundamental, onde executou as outras 26 vítimas.
Um único tributo, rabiscado numa folha de papel colada num pedaço de madeira, presta homenagem a Nancy Lanza em Newtown. “Outros se consolam mutuamente por escolhas que você teve de fazer sozinha. Quem nunca errou atire a primeira pedra”, diz um trecho do texto.
A mãe do assassino foi enterrada três dias atrás numa cidade vizinha, em cerimônia privada, restrita a 25 familiares. Ela tinha 52 anos, era divorciada e recebia uma pensão anual equivalente a R$ 578 mil para a educação e cuidados com o filho problemático.
Como se sabe, tanto o rifle de assalto Bushmaster M4 com o qual Adam executou a matança como as outras quatro armas encontradas em sua casa pertenciam à mãe e estavam devidamente registradas.
A sra. Lanza seguia com convicção os preceitos de quem, nos Estados Unidos, se declara “adepto da sobrevivência” — grupo de pessoas em permanente estado de alerta para a erupção do caos social no país.
Estocar mantimentos e armas e aprimorar a pontaria para se proteger do perigo fazem parte dos cuidados essenciais dessa tribo.
Parentes próximos contam que por ocasião de reuniões em família Nancy indagava com frequência se todos estavam devidamente preparados para o dia em que a economia do país entrasse em colapso.
Vizinhas com quem compartilhava rodadas semanais de baralho contam que em 15 anos de convivência nunca foram convidadas para a casa da mãe do assassino. Um paisagista do bairro relembra sempre ter recebido o pagamento da sra. Lanza na soleira da porta.
Com o filho, a adepta da sobrevivência fazia exercícios regulares de tiro numa academia da cidade.
Segundo análise de dados estatísticos feita por Nate Silver, o festejado guru da mídia que acertou todas as previsões da reeleição de Obama no mês passado, a variável mais confiável para se prever a intenção de voto de um eleitor, nos Estados Unidos, é a posse de armas.
Gênero, raça, faixa etária, renda familiar, educação, religião, domicílio — nenhum desses fatores é tão determinante na intenção de voto quanto a posse de armas.
Mais da metade dos casais com filhos pequenos que votam no Partido Republicano tem armas em casa. Entre eleitores democratas, esse número cai para “apenas” um em cada quatro casais. A média nacional americana está em três armas por domicílio.
Basta assistir à televisão nos Estados Unidos para saber que a cada ano 34 civis são mortos por armas de fogo. Em apenas seis meses, esse total iguala o número de militares americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão.
Nancy Lanza tinha, em casa, um filho problema e cinco armas. Inicialmente os moradores de Newtown a prantearam como vítima inocente, a ser computada e incluída nos memoriais. Pouco a pouco, sua memória começa a ser deslocada da condição de vítima para a de corresponsável pela tragédia de Newtown.
O problema não era apenas o filho, o morto de número 28 da chacina.
Menos de duas horas após o término do momento nacional de silêncio, o CEO da Associação Nacional do Rifle, a robusta entidade que promove e defende o armamento individual de todo cidadão, saiu da retranca que mantivera desde o massacre.
“Só uma pessoa do bem com uma arma na mão é capaz de deter uma pessoa do mal que tem uma arma na mão”, declarou sem pestanejar Wayne LaPierre, em entrevista coletiva.
Culpou a mídia, os videogames e a indústria do entretenimento pela matança e aproveitou para lançar novo apelo para que toda escola americana adote seguranças armados.
Na véspera, um aluno de 13 anos, residente em St. Lucie, na Flórida, fora preso por ter postado uma mensagem no Facebook ameaçando “levar uma arma para a aula amanhã e atirar em todo mundo”.
Nos últimos 10 anos ocorreram 62 chacinas no país. Nancy Lanza foi cumpridora das leis em vigor.
Dorrit Harazim é jornalista
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