Os próximos 10 anos foram declarados pela ONU como a Década para as Pessoas com Ascendência Africana, com o objetivo de promover a valorização da cultura e da cidadania dessa população. O Correio inicia hoje série de cinco reportagens sobre o tema
Max Milliano Melo, Correio Brasiliense,21/12/2012
Max Milliano Melo, Correio Brasiliense,21/12/2012
Portas são geralmente associadas a novas oportunidades, vistas como um símbolo de caminhos que se abrem e de soluções para os problemas. Mas a pequena Ilha de Gorée, a 3km da costa de Dakar, no Senegal, guarda uma passagem com um significado muito mais profundo e doloroso. Sob o pequeno portal de pedras, localizado no térreo de uma edificação do século 18, passaram cerca de 1 milhão de africanos. Do outro lado da abertura, ficavam os tumbeiros, navios que transportavam os negros para uma viagem que, na imensa maioria das vezes, não tinha volta. Após cruzarem a chamada Porta sem Retorno, as almas aprisionadas eram levadas para diversas partes do mundo, especialmente para o Brasil, que abrigou a maior população de escravos do mundo.
As mãos negras colheram o algodão branco do sertão, cortaram os pés de cana-de-açúcar do Nordeste, extraíram os diamantes reluzentes das minas e cultivaram o café, ouro negro brasileiro. Essas mesmas mãos - muitas vezes amarradas, para exercer sobre o corpo o controle que não se tinha da mente desses exilados - construíram outro tipo de riqueza, inestimável, até hoje expressa na beleza do samba, no esplendor do candomblé, na exuberância do tambor de crioula e em tantas outras manifestações que tornaram rica e diversa a cultura do último país do mundo a abolir a escravidão.
Apesar de a história ensinada nas escolas reservar pouco espaço para a cultura negra e a memória da escravidão - a maior tragédia da humanidade em número de vítimas -, os escravos tiveram um papel fundamental na construção da identidade nacional. O mesmo fizeram em todas as outras regiões para as quais foram forçados a ir. Assim, a história do negro é também a história do branco, do índio e do asiático, porque a cultura e o destino desses povos estão diretamente ligados ao convívio com os modos, os costumes e o pensamento dos africanos arrancados de sua terra e de seus descendentes. Às vésperas do início das comemorações da Década para as Pessoas com Ascendência Africana, declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Correio publica uma série de cinco reportagens sobre a memória da escravidão e seus efeitos sobre o mundo, sentidos até hoje. "Macumba é bruxaria." "Mulher negra é mais fácil." "Homens negros são mais viris." "Os negros são pessoas alegres e festivas." Essas são algumas das respostas que pessoas abordadas nas ruas de Brasília deram quando perguntadas sobre aspectos da cultura afro. A ignorância sobre a realidade, sobre as tradições e sobre os costumes do mais numeroso grupo da população brasileira é fruto do tratamento que os africanos e seus descendentes receberam desde que os primeiros navios negreiros, ou tumbeiros, começaram a aportar na costa do país. Inicialmente escravizados, tornaram-se, há um século e meio, homens livres, mas abandonados à própria sorte pelo Estado.
A abolição da escravidão não os livrou das visões deturpadas, que se multiplicaram. O fenômeno não é exclusividade brasileira, tanto que as Nações Unidas declararam o período entre 2013 e 2023 a Década para as Pessoas com Ascendência Africana. A data servirá para promover ações que ajudem os afrodescendentes do mundo todo a conquistarem a cidadania plena. Estão previstas também iniciativas que valorizem a história e a cultura desses povos.
No país, a luta contra o preconceito ainda tem um longo caminho. A antiga imagem do malandro, especialista em pequenos golpes, desempregado e morador das regiões boêmias das grandes cidades, é um dos vários estereótipos já criados por um Brasil onde ser negro não é visto como uma característica positiva. "Tradicionalmente, a indústria cultural se apropriou de alguns aspectos da cultura negra, transformando-a em mercadoria", afirma Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), da Universidade de Brasília. "Está aí o carnaval, uma festa que movimenta milhões, rende muito dinheiro para alguns, mas muitas vezes não é instrumento de promoção da cidadania negra", completa o pesquisador.
Esse processo de desvalorização cultural iniciou-se logo após a abolição da escravatura, no fim do século 19. Se, antes, o negro era mercadoria desumanizada, passou a ser visto como ser inferior. "Nesse contexto, o Brasil assumiu uma política de branqueamento da população, renegando o negro e promovendo a imigração de poloneses, italianos, austríacos, japoneses", diz Inocêncio. "Há documentos do final do século 19 e início do século 20 mostrando que esse era um objetivo muito claro, quando o poder público passou a estimular a vinda desses povos", completa.
Assim, ser negro continuou motivo de vergonha para muitos indivíduos. "O Brasil foi aprovar sua primeira lei não criminal para garantir a cidadania negra quase 150 anos depois de abolir a escravidão. Antes disso, o Estado se furtou da sua obrigação de promover a melhoria da qualidade de vida das pessoas com ascendência africana", afirma Eloi Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura.
A norma a que ele se refere é a Lei nº 2.288/2010, o chamado Estatuto da Igualdade Racial, que prevê uma série de medidas para a promoção da cidadania negra, como a obrigatoriedade do ensino de história africana nas escolas, o reconhecimento de que a capoeira é um esporte e deve receber apoio do Estado e a garantia da livre prática de religiões de matriz africana, como o candomblé, a umbanda e o ketu. A lei, em vigor há pouco mais de dois anos, também busca impedir a discriminação no mercado de trabalho. "O problema é a aplicação. Qualquer política voltada para os negros enfrenta grande resistência. Há uma dificuldade de se reconhecer que há uma compensação a ser feita", avalia Inocêncio.
Resgate mundial
A desvalorização da cultura de origem africana pode ser percebida no restante do mundo. Apenas 9% dos patrimônios culturais e naturais da humanidade reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) são localizados na África Subsaariana, região que concentra 14% da população mundial. Já a Europa, lar de 11% dos habitantes da Terra, possui quase metade desses bens, num exemplo de que a visão eurocêntrica persiste. Por outro lado, 42% dos patrimônios em risco de desaparecimento estão na região subsaariana. "Muitos países não têm recursos humanos e financeiros para garantir o reconhecimento de seus locais de singular importância", lamenta Irina Bokova, diretora-geral daUnesco.
A partir da iniciativa da ONU, os próximos 10 anos serão essenciais para o processo de resgate da identidade dos afrodescendentes e a promoção de avanços sociais na África. A ação surgiu da constatação de que a realização do Ano Internacional das Pessoas com Ascendência Africana, declarado em 2011, não foi suficiente para avanços contundentes. "Verificou-se que, apesar do grande número de ações por parte de alguns Estados, organizações internacionais e sociedade civil, o trabalho a ser feito para promover significativamente o direitos das pessoas de ascendência africana não poderia, em um único ano, chegar a resultados que atendessem às expectativas", completa Bokova, ressaltando que existe um longo caminho a ser percorrido para que todos, independentemente da cor da pele ou origem geográfica, sejam tratados de forma igual. (MMM)
Nenhum comentário:
Postar um comentário