2 de setembro de 2014

VLADIMIR SAFATLE, Covardia


Pouco antes de morrer, o presidente francês François Mitterrand ouviu de um jornalista: "Qual a principal virtude de um governante?". Sua resposta: "A indiferença". O jornalista não conseguiu esconder seu espanto, no que Mitterrand completou dizendo que aqueles que se deixam tocar por tudo não são capazes de pensar, operar escolhas difíceis, calcular a longo termo. Para bem governar, deveríamos saber cultivar certa insensibilidade.
Essa resposta parecia conter sabedoria, mas na verdade continha apenas covardia. Pois o bom governante, aquele disposto a operar transformações reais, é, ao contrário, capaz de sentir o que a maioria da sociedade não quer sentir.
Não há sociedade sem exclusão e violência contra quem não tem força nem amparo nas normas e procura viver de outra forma. Por isso, a verdadeira ação política consiste em se perguntar quem são, onde estão os mais vulneráveis. Não é difícil encontrá-los. Basta se perguntar quem, de forma repetida, é expulso da categoria "humanidade" pela maioria da sociedade, visto como selvagem, doente, miserável e, por isso, merecedor de contínua violência.
Marx cunhou a ideia de "proletário" exatamente para descrever como a miséria eliminou da "humanidade" levas de operários que não tinham nada, a não ser sua própria miséria. Junto a eles estão hoje índios expulsos da grande narrativa do progresso, palestinos expulsos da condição de "povo", homossexuais tratados como doentes, travestis tratados como monstros. A lista pode parecer heteróclita, mas todos eles são ligados entre si por serem objetos da pior violência --a baseada no não reconhecimento de sua humanidade integral.
Pensem, por exemplo, em homossexuais vistos por muitos como "anormais", que não podem se casar, contentando-se com um reconhecimento legal de segunda classe. Um verdadeiro governante seria capaz de sentir o sofrimento de tal vulnerabilidade, lutar com todas suas forças contra a tentativa de jogar tal sofrimento à invisibilidade, mudar as leis e usar as escolas como espaço de sensibilização.
Porém, o que vemos no Brasil é o espetáculo deplorável de programas políticos que, ou não mencionam tais questões, ou são modificados do dia para a noite por medo de represálias de setores conservadores.


Mais cínico é justificar tal exclusão dizendo "não haver consenso" sobre o tema. Mitterrand, quando ganhou sua primeira eleição, ainda era capaz de agir politicamente. Uma de suas primeiras decisões foi abolir a pena de morte, mesmo contra a vontade da maioria. Hoje, quase todos os franceses reconhecem que ele tinha razão. Ele teve a capacidade de sentir e a coragem de decidir sem consenso, mas em nome de um sofrimento que deveria parar. Coragem que boa parte de nossos políticos desconhece, dentro ou fora do governo.

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