22 de maio de 2011

Realengo: Lembranças que não se apagam



22 de maio de 2011
Educação no Brasil | Revista Veja | Sociedade | BR



O mostro. Wellington Menezes de oliveira, morto depois de ceifar a vida de doze crianças









\\\"TENHO MEDO DE TUDO\\\" A estudante RENATA ROCHA (a primeira à direita, que preferiu posar ao lado do grupo), de 14 anos, voltou à escola, mas, ao contrário de antes, quando tinha um comportamento esfuziante, anda quieta, ausente e com sinais de depressão. \\\"A ficha dela só está caindo agora\\\". resume a mãe. Veronice Lima, de 43 anos. Renata recebeu um tiro nas costas quando tentava fugir da sala. A bala saiu pelo abdômen, onde até hoje ela sente fortes dores. Só escapou de ser alvejada na cabeça porque faltou munição ao atirador: \\\" Ele ria enquanto disparava contra a gente\\\", lembra a menina. que cogitou deixar o colégio, mas desistiu. \\\"Se mudasse, não resolveria o problema. Carregaria comigo as lembranças - e o medo.\\\"

Depois do massacre em Realengo, as crianças tentam superar a dor e voltar à rotina - mas ainda sofrem intensamente com as lembranças da barbárie que testemunharam
Um mês após o massacre que ceifou a vida de doze crianças e deixou outras doze feridas, não se veem mais as paredes perfuradas nem vestígios de sangue na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. As marcas da chacina levada a cabo pelo ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira, algumas delas indeléveis, estão gravadas na memória dos estudantes. Nó t11timo dia 2, quando 928 dos 1 159 alunos voltaram à sala de aula, o clima era de tristeza e medo. Ao som de qualquer barulho mais forte, vêm à mente de estudantes como Renata Rocha, de 14 anos, as cenas de horror que presenciaram. "Meu pânico é que aconteça tudo de novo", diz a menina, que foi alvejada nas costas com um tiro que saiu pelo abdômen. Wellington chegou a mirar sua cabeça, mas naquele momento estava sem munição, e ela se salvou por um triz. Até então, trinta alunos pediram transferência de escola - possibilidade que Renata chegou a aventar. Mas desistiu. Ela justifica: "Poderia mudar de colégio, só que as lembranças daquele dia e esse medo horrível que tenho de tudo iriam comigo".
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O Horror de voltar à cena do crime. Quando passa pela sala 1803, um dos palcos do massacre, a estudante Marcelly de Souza Cerqueira, 14 anos, sente uma mescla de pavor e culpa. "Tenho raiva de mim mesma por não ter tentado deter aquele louco no momento em que ele atirava em três amigas minhas", diz a menina. As três morreram. Assistida por uma psicóloga, Marcelly tenta lidar com a tragédia, mas reconhece que pouco avançou. Ela voltou à escola, mas, para subir ao 2º andar do prédio, para o qual sua turma foi transferida, pede a escolta de um professor. "Tenho muito medo de que aconteça tudo de novo", diz
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As sequelas do episódio estendem-se a todos na escola, mas há muitas nuances na reação à tragédia. Alguns casos são realmente graves. "Em geral, os mais devastados são aqueles que testemunharam de alguma forma o massacre", avalia o psiquiatra Ricardo Krause, da Comissão de Intervenção em Catástrofes da Associação Brasileira de Psiquiatria, que esteve na escola. Parte dos estudantes e dos professores apresenta sintomas de um mal classificado na literatura psiquiátrica como transtorno do stress pós-traumático, cujos sinais persistem mesmo passado o choque inicial
Segundo estudos internacionais, é algo que ocorre com cerca de 30% das pessoas que experimentaram algum episódio brutal, em que sua vida esteve sob ameaça. A toda hora, elas revivem as sensações físicas de quando foram submetidas à violência. A frequência cardíaca é acelerada, a pressão arterial se eleva, a.pupila se dilata e o sentimento de medo aumenta à medida que a atividade na região do cérebro responsável pela cognição, capaz de discernir as situações de perigo, fica mais lenta. Os pesadelos são constantes.
Aos 13 anos, Carlos Matheus de Souza passou a dormir na cama dos pais; Acorda, com os próprios gritos: "Não faz isso tio! Não faz isso!" - e protege o rosto com os braços. À base de fisioterapia, ele tenta recuperar os movimentos no braço esquerdo, atingido por duas balas. Está tão abalado que passou a mancar com a perna esquerda, ainda que não tenha sido ferido ali, e sente terríveis dores pelo corpo, mesmo sem uma razão fisiológica, segundo os médicos. Ele tentou voltar às aulas mas como outros em situação semelhante, não conseguiu suportar o peso de lembranças tão recentes - e preferiu ficar em casa.
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Não quero que ninguém encoste em mim"
A toda hora, vêm à cabeça do estudante Carlos Matheus de Souza, de 13 anos, as imagens de nove de seus colegas de turma sendo fulminados à queima-roupa na sala de aula. Ele foi alvejado com três tiros - um passou de raspão no coração e dois atingiram seu braço esquerdo, cujo movimento tenta recuperar com fisioterapia. O garoto diz sentir fortes dores pelo corpo e caminha mancando com a perna esquerda, apesar de não ter sido ferido ali. Segundo os médicos, sua dor intensa não tem mais razão fisiológica, mas é uma reação ao trauma que o faz hoje repelir qualquer contato físico. "Não quero que ninguém encoste em mim", diz ele, que agora só consegue dormir na cama dos pais e tem constantes pesadelos. Desperta com os próprios gritos:
"Não faz isso, tio! Não faz isso!" - e protege o rosto com os braços.
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Licença depois de um surto
A professora de português Elaine Pais Alvez, 44 anos, trabalha desde os 20 no colégio Tasso da Silveira. Agora, não consegue mais pisar na escola sem suar frio, sentir o coração disparado e chorar. Até a semana passada, ela era um das mais empenhadas em ajudar os alunos na volta à rotina, mas teve uma súbita crise nervosa. O barulho e a bagunça dos alunos a fizeram lembrar, como num filme, as cenas que ela presenciou no dia do massacre. "Conhecia aquelas crianças fazia anos", conta Elaine, hoje licenciada e consultando-se com uma psicóloga. "Sei que tenho um longo caminho a percorrer para ficar bem."
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Ao todo 250 estudantes, pais e professores procuraram a ajuda de fisioterapeutas, psicólogos e psiquiatras, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Alguns continuam sendo tratados - entre eles seis dos feridos, que ainda não receberam alta médica. São números que permitem avaliar a dimensão dos estragos causados pela tragédia. Existe um consenso de que, nos primeiros dias que se seguem a um evento como esse, o melhor a fazer é não forçar o confronto com as lembranças que ele deixa. A ideia nessa etapa é evitar que tais memórias se solidifiquem. No momento atual, já a certa distância do fato, a recomendação passa a ser justamente a oposta. "Os que encaram e tentam processar o trauma, se necessário com terapia e medicamentos, são os que tem mais chances de se recuperar", afirma o psiquiatra Felipe Corchs, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Por isso, os especialistas concordam que, no caso de Realengo, o retorno à escola pode ajudar. A luz da experiência, espera-se que a maioria consiga retomar a vida com normalidade, livrando-se dos sintomas do trauma. As crianças que não superarem os abalos emocionais depois de seis meses poderão precisar de ajuda especializada pelo resto da vida. Explica o psiquiatra Fernando Asbahr, coordenador do Ambulatório de Ansiedade na Infância e na Adolescência, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo: "Desse grupo certamente fazem parte pessoas mais propensas a sofrer outros transtornos psiquiátricos no futuro".
Será um longo caminho na escola até que se restabeleça a rotina. Os estudantes se encontram em constante estado de alerta. Não raro, pedem ao professor que feche a porta da sala, como "medida de segurança". As classes I 801 e 1803, palcos do massacre, não recebem mais os alunos do 8° ano que ali estudavam. Uma delas está sendo transformada em biblioteca. Para chegarem às novas salas, agora no 2° piso, estudantes como Marcelly de Souza Cerqueira, de 14 anos, às vezes pedem para ser escoltados por um professor. "Sabe o que sinto além do medo? Culpa. Culpa por não ter conseguido ajudar as três amigas que perdi". diz a menina. No meio da jornada escolar, é comum que as crianças e adolescentes busquem a ajuda de um grupo de psicólogos da Secretaria Municipal de Educação, de plantão no colégio - momentos em que costumam falar do horror que testemunharam e dos temores que ficaram. Os próprios professores têm dificuldade em voltar à normalidade. Desde 1987 lecionando no colégio, Elaine Alves, 44 anos, teve uma espécie de surto desencadeado pela desordem que reinava entre os alunos. A situação a fez reviver as cenas da tragédia de forma insuportável. Agora em licença médica - a segunda concedida a professores da escola depois do massacre -, ela conta: "Entrava lá, suava frio e me vinha uma vontade incontrolável de chorar. Precisei parar"
Desde o dia do ataque, agentes da guarda municipal fazem vigília na porta do colégio. Como o matador Wellington de Oliveira era ex-aluno, passou à vontade pelo portão. Mas o debate sobre como garantir a segurança nas escolas publicas permanece aceso. Nas escolas da rede municipal do Rio, funcionários encarregados da merenda e de outras funções eram também incumbidos de zelar pela portaria. A ideia agora é dotar as escolas de porteiros responsáveis pela entrada e saída de visitantes devidamente identificados. Também haverá mais inspetores, de modo que cada colégio conte com um deles por andar. O mais difícil será amenizar a sensação de insegurança que restou. Recentemente, ao ouvirem a movimentação de estudantes no corredor. os alunos de uma das turmas da Tasso da Silveira saíram correndo, no meio da aula, aos berros. "Aquele dia marcou nossa vida para sempre". afirma Luís Marduk, diretor da escola.




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