Beleza roubada
RESUMO Confiscar obras de arte era para os nazistas tão importante quanto as vitórias militares; artista frustrado, Hitler escondeu em lugares como minas de sal milhares de peças e tinha planos de construir um gigantesco museu. Livro de jornalista porto-riquenho ilumina em detalhe o funcionamento da máquina nazista de espoliação.
Quando, no início de maio de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, oficiais do Terceiro Exército norte-americano entraram numa mina de sal da pequena cidade de Altaussee, nos Alpes austríacos, se depararam, depois de uma longa caminhada pelas galerias subterrâneas, com uma curiosa população de esculturas antigas de mármore branco, posicionadas como se estivessem numa reunião.
As lanternas dos oficiais também iluminaram uma vasta quantidade de pinturas, 6.755 delas, contabilizou-se depois, apoiadas nas pedras de sal, sem nenhum plástico que as protegesse. Mais de 5.000 eram de grandes mestres, incluindo a joia da pintura holandesa "Adoração do Cordeiro Místico" (1425-32), dos irmãos Van Eyck, uma madona de Michelangelo e "O Astrônomo", de Vermeer.
Anos mais tarde especulou-se que a pintura mais famosa do mundo, a "Mona Lisa", de Da Vinci, tenha estado na mesma mina, no período de três anos em que a sorridente obra-prima ficou realmente escondida. O pesquisador norte-americano Noah Charney, autor de um livro sobre o tema, "The Thefts of the Mona Lisa" [Arca, US$ 18, 162 págs.], concluiu que houve sim uma Gioconda no subsolo de Altaussee, mas que se tratava de uma cópia, que os nazistas acreditaram ser a verdadeira.
Não havia só quadros pela mina. Em caixotes e cestas, repousavam pilhas de livros e de documentos antigos, e móveis de variados estilos, inclusive tronos, eram vigiados por armaduras de 600 anos.
Espalhadas por todo o cenário estavam caixas de madeira, de diferentes tamanhos, com a mesma inscrição, que também pôde ser vista nos versos de muitas das melhores pinturas: A.H., Linz.
Havia mais de 3.000 anos, e ainda hoje, aquela mina tinha sido usada para a extração de sal. Mas naqueles tempos de guerra ela se convertera numa espécie de reserva técnica, um depósito para o gigantesco museu que Adolf Hitler (o A.H.) pretendia construir na cidade austríaca onde passou parte de sua infância e adolescência.
O ambicioso projeto de Linz, que caso houvesse sido levado a cabo constituiria o maior museu de todos os tempos, implodiria em seguida. Pouco antes de se suicidar, em 30 de abril de 1945, o líder nazista ditou um testamento, no qual manifestava o desejo de que o museu fosse continuado por seus seguidores, mas seu delírio não ultrapassou os limites do bunker de Berlim, onde ele mantinha uma maquete do tamanho de um quarto do "Führermuseum".
Com a fachada desenhada pelo próprio Hitler, como se sabe um pintor e arquiteto frustrado, o museu começou a ser planejado antes do início da guerra. Em junho de 1939, a meses da invasão da Polônia, um historiador da arte designado para montar o acervo da instituição já tinha em mãos um orçamento equivalente a R$ 185 milhões atuais. Em fins de 1944, com muitos alemães em debandada, a empreitada ainda ganhava fôlego (e dinheiro). Naquela altura, sua dotação orçamentária era de inacreditáveis R$ 1,38 bilhões.
Ainda que muitos marcos alemães tenham sido empregados em compras e vendas de obras de arte na Europa, ao longo da Segunda Guerra, não era este o principal expediente do Exército alemão para saciar a fome de arte de Hitler e de outros líderes do Terceiro Reich. Roubar, espoliar e confiscar eram verbos mais conjugáveis.
Um dos melhores trabalhos já feitos sobre o tema, "O Museu Desaparecido - A Conspiração Nazista para Roubar as Obras-Primas da Arte Mundial" [trad. Silvana Cobucci Leite, WMF Martins Fontes, R$ 47,50, 384 págs.], de Héctor Feliciano, chega enfim às livrarias brasileiras neste final de novembro --18 anos depois de sua edição original, na França.
Não é um capítulo encerrado, este ao qual o premiado jornalista porto-riquenho dedicou muitos anos de pesquisa, desde que topou acidentalmente com o tema, em 1988. Os recentes acontecimentos num apartamento do bairro de Schwabin, em Munique, ilustram isso com vivacidade.
Feliciano conta à Folha que quase engasgou quando leu a edição digital do "Guardian", há dois domingos, no terraço de sua casa, em San Juan, capital de Porto Rico.
O diário britânico reproduzia a notícia dada pela revista alemã "Focus" de que mais de 1.400 obras haviam sido encontradas em posse de Cornelius Gurlitt, filho de um dos marchands mais influentes entre os nazistas, Hildebrand Gurlitt.
Uma das pinturas apreendidas no apartamento do misantropo Gurlitt, "Mulher Sentada em uma Poltrona" (1920), de Henri Matisse, estava inclusive reproduzida no livro do jornalista.
Era uma obra sem destinação conhecida, que pertencera a uma das principais coleções de arte de marchands judeus franceses confiscadas durante a guerra, a de Paul Rosenberg (1881-1959), que foi galerista de artistas como Matisse, Picasso e Braque.
Como conta em minúcias "O Museu Desaparecido", em texto fluente e repleto de informações, a coleção Rosenberg integra o conjunto de 100 mil pinturas roubadas, apenas na França, pelos nazistas, que também confiscaram cerca de 500 mil móveis e mais de 1 milhão de livros e manuscritos.
O trabalho de Feliciano ilumina todas as engrenagens dessa máquina de roubar obras de arte: que estruturas de poder organizavam os butins, de quem confiscavam, que tipos de pinturas eram almejados, como as peças eram transportadas, estocadas, quem saía ganhando com esse vaivém.
EPICENTRO Ainda que muitos tenham sido os cenários dessa história, o epicentro foi o museu conhecido como Jeu de Paume, na place de la Concorde, centro de Paris. Nesse pavilhão, construído em 1861 por Napoleão 3° originalmente como um espaço para o jogo ancestral do tênis, funcionou o maior depósito de obras roubadas pelos nazistas.
Lá também operou a principal das três estruturas do Reich para roubo de arte, a ERR, abreviação de Einsatzstab Reichsleiters Rosenberg für die Besetzten Gebiete, ou Destacamento Especial do Dirigente do Reich Rosenberg para os Territórios Ocupados, sendo o Rosenberg em questão o ideólogo nazista Alfred Rosenberg.
Só no período que vai do outono de 1940, quando a França já estava ocupada pela Alemanha, ao inverno de 1941, sabe-se que o ERR teve ao menos 60 funcionários fixos: historiadores, restauradores, fotógrafos. O labor deles era acompanhado pela elite do Reich.
O número 2 do regime nazista, Hermann Goering, comandante-chefe da Força Aérea alemã, esteve pessoalmente mais de 20 vezes no Jeu de Paume, para supervisionar trabalhos e, sobretudo, para alimentar sua coleção particular.
Um depoimento do líder nazista Hans Frank durante o Julgamento de Nuremberg, o tribunal militar internacional para julgar os crimes de guerra, entre 1945 e 1946, dá a ideia da afeição do "reischsmarschall" pela arte. "Se Goering tivesse gasto mais tempo na Força Aérea e menos nas bacanais e pilhando obras de arte, talvez a Alemanha estivesse em melhor situação hoje, e eu não estaria preso nesta cela", disse Frank.
O testemunho está recolhido no livro "As Entrevistas de Nuremberg" [trad. Ivo Korytowiski, Companhia das Letras, R$ 68, 552 págs.], de Leon Goldensohn, que traz ainda depoimentos do próprio Goering sobre arte.
"De todas as acusações lançadas contra mim, a chamada pilhagem de tesouros artísticos foi a que mais me angustiou", disse. Ele também tratou de suas preferências. "Gosto de todo tipo de arte, exceto o negócio futurista, que detesto. Costumo ser bem cético quanto às pinturas modernas. Picasso, por exemplo, me enoja."
Sabidamente não estava sozinho nestas avaliações. Modernistas em geral eram tratados como "degenerados" e, se eram muito bem guardados pelos nazistas, numa ala do Jeu de Paume batizada de Sala dos Mártires, era para que fossem vendidos ou trocados por outras pinturas consideradas "nobres". "Um mestre da pintura, ou ainda um de seus insossos seguidores, vale por seis, sete, oito ou até dez petimetres' modernos", contabiliza Héctor Feliciano.
CONFISCOS Hitler não frequentava o Jeu de Paume --só esteve uma vez em Paris em toda a sua vida, numa viagem furtiva logo depois da ocupação--, mas acompanhava com zelo os confiscos na França.
"De todos os ditadores do século 20, nenhum gostou tanto de arte quanto Hitler", diz Feliciano. "Se não houvesse esse interesse profundo e tão integrado na ideologia nazista, não teria havido um butim deste tamanho. Em pleno esforço de guerra, consideravam cada saque tão importante quanto ganhar uma batalha."
Prova da importância que dava ao tema dos saques artísticos é um relatório que Hitler encomendou antes da guerra a um historiador alemão chamado Otto Kümmel.
Ele pediu ao então diretor dos museus nacionais do país para elencar todas as obras de arte roubadas da Alemanha desde o século 16, para que fossem recuperadas.
O chamado "Relatório de Kümmel" é composto por três volumes, cada um com cem páginas. Na lista, entram desde flâmulas e bandeiras roubadas pela Suécia na Guerra dos Trinta Anos (1618-48) até pinturas da coleção do rei da Inglaterra, como "Cristo e Maria Madalena", de Rembrandt, um dos artistas prediletos do Führer.
Hitler não teve muito sucesso com as obras listadas por Kümmel, mas sua política de saque de obras de arte pode ser considerada a mais eficiente desde que Roma começou a pilhar peças da Antiguidade Grega.
O alvo principal eram as grandes coleções. E a que sofreu mais perdas foi a da tradicional família de banqueiros Rothschild, que teve 5.009 obras confiscadas.
Feliciano dá bastante destaque também às expropriações das obras do colecionador Alphonse Kann, do investidor Fritz Guttmann, dos banqueiros David-Weill e da dinastia Bernheim-Jeune.
Depois da guerra, uma parte importante das obras foi restituída às famílias. Havia ao menos um destacamento dos Aliados dedicado só a essa tarefa, chamado de Monumentos, Obras de Arte e Arquivos. O grupo, formado em 1943, para ajudar a proteger e detectar obras roubadas (e também devolvê-las), ficou conhecido como "The Monuments Men".
É este o nome de um livro de Robert M. Edsel, no Brasil lançado como "Caçadores de Obras-Primas" [trad. Talita M. Rodrigues, Rocco, R$ 57, 368 págs.], base de um filme homônimo dirigido e protagonizado por George Clooney, a ser lançado no início do ano que vem, no Festival de Berlim.
Feliciano diz que o livro é "chauvinismo militar americano", pois, a seu ver, dá a entender que só oficiais daquele país estiveram na elite de resgate de obras de arte, quando havia, entre outros, militares franceses, canadenses e britânicos.
De qualquer modo, por maiores que tenham sido os esforços dos "Monuments", uma parte substancial dos roubos nunca voltou às famílias originais.
LEGISLAÇÕES A obra de Feliciano, publicada em diversos países do mundo, acelerou o processo de restituição, assim como outra obra importante sobre o tema, "Europa Saqueada" [trad. Carlos Afonso Malferrari, Companhia das Letras, R$ 68, 544 págs.], da historiadora Lynn H. Nicholas, lançada nos Estados Unidos em 1994. Após as publicações dos livros, tiveram lugar mudanças nas legislações de diversos países.
"O Museu Desaparecido" chama a atenção para o fato de que as instituições francesas detinham, à época do lançamento do livro no país, mais de 2.000 obras de arte recuperadas depois da guerra e não restituídas aos proprietários originais. O jornalista identificou telas importantes em tal condição, como a pintura cubista "Dama em Vermelho e Verde", de Fernand Léger, que estava no Centro Pompidou, ou "O Bosque", do pintor François Boucher, uma das 400 obras "não reclamadas" do acervo do Louvre.
Em 1997, o presidente Jacques Chirac anunciou a criação de uma comissão para tratar do tema, a qual organizou uma exposição nacional com todas as pinturas, respondendo ao argumento de Feliciano de que os museus nem sempre davam visibilidade às obras não reclamadas e não se esforçavam para encontrar os donos originais.
O número de obras roubadas e não restituídas foi caindo progressivamente, mas, das 100 mil pilhadas só na França, o autor estima que cerca de 25 mil ainda não tenham sido devolvidas.
Segundo ele, houve avanços na legislação alemã, que passou a considerar como roubadas também as peças vendidas entre 1933, ano de ascensão de Hitler ao poder, e 1939, já que colecionadores eram forçados a vender. A legislação que menos contribui, para ele, é a da Suíça, que só pune as compras comprovadamente de má fé.
Houve quem alegasse que Feliciano, mestre em jornalismo pela Universidade Columbia e doutor em literatura pela Universidade de Paris, estivesse agindo de má-fé.
Em 1998, três descendentes diretos do conhecido marchand Georges Wildenstein o processaram no Tribunal de Grande Instância de Paris, acusando-o de danos morais por conta de passagens do livro que tratavam das ligações do galerista com os nazistas.
"Mesmo depois do armistício na França e da ocupação alemã desta, Wildenstein parece ter tirado proveito dessa rede de contatos para organizar uma série de contratos e transações com os alemães", diz um trecho do livro.
Os herdeiros pediam US$ 1 milhão e exigiam que ele não voltasse a mencionar o nome Wildenstein em qualquer de seus escritos. As idas e vindas na Justiça levaram cinco anos, até que a Cour de Cassation (equivalente francês do Supremo Tribunal Federal) indeferiu a demanda dos galeristas.
Ainda em plena atividade no universo da arte, os Wildenstein têm uma ligação estreita com a história dos museus no Brasil. Eles foram os principais vendedores de pinturas de grandes artistas internacionais para o Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
Segundo levantamento feito pela Folha, ao menos 52 pinturas importantes do museu passaram pelas galerias Wildenstein, entre elas 36 obras francesas, 6 espanholas e 4 italianas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário