Carta Capital - Política
por Roberto Amaral — publicado 08/05/2014
A
história ilumina o caminho dos que ainda hoje almejam o Brasil democrático,
livre e soberano. Por Roberto Amaral
Tony Ramos como Getúlio Vargas em "Getúlio"
Como sempre, o passado ajuda a compreender o presente,
principalmente quando a memória histórica, nosso caso, é rala como uma nuvem de
fumaça. Eis a oportuna contribuição de Getúlio, um filme acima de tudo
correto (para o que se propunha) e suficientemente didático para que os jovens,
que não viveram a experiência trágica daqueles idos de agosto, travem
conhecimento com os cordéis que manejavam e manejam a cena política brasileira.
Então e agora, nesta nossa história sem povo-massa, sem povo-sujeito, os
principais atores raramente eram e são vistos sob as luzes da ribalta. Por isso
mesmo, o que o filme revela, e aí muito bem, é, apenas, uma parte da história,
exatamente a mais visível e epidérmica, e, por isso mesmo, a mais conhecida.
Por ser talvez a mais fácil de ser contada pelos vencedores.
Se é tolice pensar que o assassinato de João Pessoa detonou a
revolução de 30 (sabidamente, o gatilho do revólver de João Dantas foi
pressionado por razões passionais), é pura literatice reduzir o ‘24 de agosto’
à crise desencadeada pelo inconcebível atentado da rua Tonelero, quando um
sicário trapalhão, contratado para assassinar um jornalista inescrupuloso, mata
um oficial superior da FAB travestido de guarda-costas.
A história daquela noite/madrugada inesquecível começa bem antes, em
1922, com o ‘levante do Forte de Copacabana’, inaugurando uma saga que só conheceria
sua culminância com a sublevação militar em 1º de abril de 1964 e a
ditadura a seguir implantada. Esta saga tomou o nome de ‘tenentismo’, a décadas
de insurreições, levantes, inconfidências, intentonas, ‘pronunciamentos
militares’ e golpes de Estado – que marcam a vida política brasileira. Assim
tumultuando o processo institucional de uma sempre jovem e frágil democracia
ansiando por uma consolidação que nunca chega: 1922, 1924, 1930, 1932, 1935,
1937, 1938, 1945 (primeira deposição de Vargas), 1954 (a segunda deposição de
Vargas), o golpe e contra-golpe de 11 de novembro de 1955, as arruaças de
Aragarças e Jacareacanga, tentativa de golpe e contra-golpe de 1961 (renúncia
de Jânio e posse de Jango) e, finalmente, deposição de Jango (1964) e instauração
da ditadura militar (1964-1985), sonho que remonta a Floriano Peixoto. As
insurgências são muitas, mínima porém a variação dos personagens. O brigadeiro
Eduardo Gomes, rebelde de 1922, é o ministro da Aeronáutica (de Café Filho e de
Castelo Branco na ditadura); os marechais Juarez Távora (ministro dos
Transportes e da Agricultura de Vargas, 1930/1932-34; conspirador em 1945,
1954, 1955, Chefe da Casa Militar de Café Filho, 1954-55) e Cordeiro de Farias
(chefe do Estado-Maior das forças golpistas em 1961), ambos personagens de
destaque da ‘revolução’ de 30, estão juntos na ditadura de 1964. Como se vê, o
tal compromisso das Forças Armadas brasileiras com a democracia não resiste a
qualquer análise. Os fatos mudam, porque a história não se repete, embora no
Brasil ela seja recorrente; os personagens são os mesmos em permanente
revezamento. Não mudam as mãos e os cérebros que manipulam os cordéis das
marionetas.
Os interesses de classe são os mesmos e mesmos são seus agentes e
seus prepostos.
Durante esse longo período, isto é, até o fim da última ditadura, o
Exército funcionou como ‘poder moderador’, mostrengo monárquico em plena
República, e o Clube Militar, seu braço desarmado, cumpriu o papel de
verdadeiro partido político, embora sem a legitimidade do mandato eletivo.
Pronunciavam-se, oficiais generais da ativa e Clube, sobre todos os temas:
salário-mínimo, relações internacionais, câmbio, inflação, eleições… Agiam
ambos como agentes políticos, configurando um Poder não previsto pelo
ordenamento constitucional, mas ‘legitimado’ pelo argumento insofismável das
baionetas.
O mundo mudara, e nele o Brasil.
A partir de 1945, com a Guerra Fria e o macartismo, o ‘tenentismo’,
de origem liberal, unifica-se ideologicamente em torno de um anti-comunismo que
se opõe ao nacional e ao popular e, em nome da democracia, pleiteia governos de
exceção. Aparta-se definitivamente do varguismo ao qual servira, inclusive no
golpe de 1937, e que trairia em 1954. Morto Vargas, sobrevive o anti-varguismo
rançoso que chega aos dias de hoje.
O americanismo é o modelo nacional de anti-comunismo, justificador
de todas as concessões. A fundamentação ideológica é fornecida pela Escola
Superior de Guerra-ESG (1949) comandada inicialmente pelo general e futuro
marechal Cordeiro de Farias, que teria Juarez Távora como seu sucessor…, mas a
instrumentalização política seria o encargo da União Democrática Nacional-UDN,
partido fundado após a redemocratização com a finalidade de combater o
varguismo e todas as modalidades de trabalhismo, reduzidas depreciativamente a
‘populismo’. E, por consequência, contra tudo o que pudesse sugerir o que mais
tarde chamaríamos de emergência das massas. Contra a politica externa
independente, contra o voto do analfabeto, contra a limitação da remessa de
lucros para o exterior, contra isso e contra aquilo.
O anti-‘populismo’ é tão-simplesmente anti-povo.
Para esses setores militares e partidários revelava-se intolerável a
volta do ditador ao poder no Brasil redemocratizado. Mas Getúlio, que não podia
ser candidato, faz-se candidato, e, não devendo ser eleito, ganha as eleições
(derrotando de forma acachapante o brigadeiro Eduardo Gomes!), e, condenado a
não tomar posse, é empossado e governa. Aos trancos e barrancos, enfrentando
oposição ensandecida, derrotando seguidas tentativas de impeachments e
boicotes do sistema financeiro internacional. Ver-se-á por que. As medidas
nacionalistas levadas a cabo pelo agora presidente constitucional acirram o
conflito e estimulam as contradições internas de seu governo – que assumira as
feições de um nacionalismo intervencionista. Sem base social de sustentação –
seu partido, o PTB, não lograra a liderança necessária das grandes massas, e o
movimento sindical se desorganizava nos desvãos dos gabinetes ministeriais –
Vargas governava à míngua de correlação de forças políticas, econômicas e
militares favorável. E, evidentemente, contra a grande imprensa brasileira, que
naquela altura era praticamente a de hoje: O Globo, Estadão e a
falecida ‘cadeia associada’ cujo grande e poderoso semanário renasceu numa
conhecida revistona, como sua matriz, também delegada dos interesses
internacionais.
Assim, contradição irremediável se estabelece em face de questões
objetivas que, se de um lado alimentam o ‘populismo’ varguista, de outro confrontam
o capital estrangeiro aqui instalado e os interesses políticos e econômicos dos
EUA, unificando-os, burguesia nacional alienada e capital estrangeiro temeroso
das nacionalizações, na ação oposicionista que medraria no Parlamento e,
principalmente, na imprensa. O atentado ao jornalista e a morte do major foram
o elemento subjetivo que mobilizaria a classe-média, católica, insegura,
moralista e reacionária.
Explica-se.
O nacional-intervencionismo varguista – com as vistas voltadas para
a industrialização – operava um Estado para além de simplesmente indutor do
desenvolvimento: agente empreendedor mais do que regulador, intervinha na
economia; seu escopo era a industrialização (é incrível que a burguesia
paulista, mal saída da cafeicultura, não tenha entendido até hoje…) e a
modernização econômica, em país fincado no agrarismo. Recusa-se a enviar tropas
para lutar na Guerra da Coréia ao lado dos EUA. Cria o BNDE (hoje
BNDES) e o Banco do Nordeste do Brasil-BNB, libera a organização sindical e
estimula a criação de novos sindicatos; reajusta o salário mínimo em 100%
(1953). Por fim, audácia suprema, estabelece o monopólio estatal do petróleo e
cria a Petrobras, em época em que atitudes desta natureza derrubavam governos,
como se viu no Irã de Mossadeg. Getúlio caiu, sacrificando a própria vida,
porque ousou desafiar o imperialismo, propondo caminho autônomo para o
desenvolvimento brasileiro. Esta a lição da história, a iluminar o caminho dos
que ainda hoje almejam o Brasil democrático, livre e soberano.
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