Colunistas - Comunidade em pauta
Jornal do Brasil
Mônica Francisco *
Fiquei oscilando entre assuntos para a coluna de hoje. Queria falar da Fifa, da favela, da violência e de tantas outras coisas tão pertinentes quanto. Mas acho que eles, os assuntos, acabam se encontrando em algum ponto convergente na correria da vida e se apresentando para nós na magia das letras.
Hoje (ontem), quando escrevo esta coluna que aprendi à respeitar e temer, me prendo à lembrança e emblema desta data que ao contrário de tantas outras de importância similar ou até menor, são veiculadas com alegria, respeito e até certa comoção. Eu a reverencio com um misto de dor, alegria e tristeza, como é a vida.
Pesquisa feita e apresentada pelo Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica da Universidade Federal de Minas Gerais (NPHED/UFMG) e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado (Fapemig), disponibilizou o Censo realizado em 1872, que contabilizava um país com 10 milhões de habitantes, sendo que 15,24% deste total era de escravos e certamente negros. Cento e vinte e seis anos depois o Brasil conta com cerca de 97 milhões de pessoas que se declaram negras, segundo o IPEA.
Isso quer dizer que a quase totalidade do nosso país hoje, evidenciada em números e pesquisas oficiais é negra. Ao refletir sobre isso, penso na Copa, na Fifa que pensa ser nossa senhora da vez, penso em Cláudia, penso em DG, penso no gerente paulista assassinado com cinco tiros após sofrer um sequestro pois a polícia o “confundiu” com seu algoz branco e tantos outros e outras.
Penso e a cabeça ferve de pensar e fazer paralelos diários. Um país de negros, onde uma apresentadora que se diz popular fala que 52% de negros não é o mais importante, o importante é a mistura, a democracia ou a falsa democracia.
Ora, é importante sim. Sabe por quê? Porque nós é que não entraremos nos estádios para ver os jogos, porque até nas ilustrações sobre o Maracanã sua torcida não apresenta "tons acima”, são monocromáticas as figuras, todas brancas. Nós talvez nem estejamos em número considerável entre os voluntários que participarão do evento porque é preciso fazer “boa figura”.
País de negros. Mas sabe o que nos aproxima do Censo de 1872? Apesar de maioria, ainda somos obrigados, ainda que resistindo, e na maioria das vezes até a morte, à conviver com condições aviltantes de vida, e os números e evidências amplamente veiculadas nesta era das grandes tecnologias, onde não se é mais possível esconder nada, nos chegam minuto à minuto.
Três vezes mais chances de morrer mostra o Mapa da Violência de 2012,e que já citei aqui. Menos valor a receber na comparação com homens e mulheres negras em termos salariais, mostra a pesquisa do Ipea. Mais mortes no parto, dados da saúde, mais presença no trabalho doméstico, maior presença, beirando quase a totalidade nos presídios, número expressivo em abandono, em situação de rua, manicômios, no craque, na ausência dos pais, sem registro de nascimento, maior tempo de espera no atendimento feito pelo serviço público em todas as áreas e também nos atingidos pelo fracasso escolar.
Ganhos tivemos, eis aí as cotas que mudaram parte da geografia humana nas universidades. Mas é preciso mais, é preciso efetividade e respeito. Marcham pelo direito de consumir maconha, grande evolução do direito de se manifestar, mas os negros e negras não têm o direito de usar seu cabelo de forma natural em muitos postos de trabalho, pois é preciso ter uma aparência “sóbria e limpa”.
Na favela, também maioria pela ausência de uma política séria, humana e responsável de habitação, os negros e negras resistem todos os dias. A juventude negra, seja da favela, periferia, da classe média ou alta até, resiste, porque o ódio racial camuflado de democracia é somente tolerância, e tolerância não é respeito, não se traduz em harmonia, é só armistício.
Cento e vinte e seis anos depois, e ainda temos que implorar para não sermos mortos. Cento e vinte seis anos depois temos que dizer que temos alma, sentimos dor, sangramos e não somos animais, ou melhor não somos macacos. Precisamos de fato de grandes reformas.
"A nossa luta é todo dia e toda hora. Favela é cidade. Não à GENTRIFICAÇÃO ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO e à REMOÇÃO!"
*Representante da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE
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