24 de junho de 2013

RUBENS RICUPERO, Fantasia desorganizada


Se nossos jovens quiserem purificar o sistema político, eles terão de canalizar a insatisfação para as eleições

Não é com as Diretas Já ou o Fora Collor que se parecem as manifestações atuais.
Aquelas iniciativas foram enquadradas e dirigidas por líderes políticos. Possuíam objetivo único e bem definido: o fim da ditadura, o fim de um presidente. Visavam, no fundo, substituir os que detinham o poder.
O movimento de agora é um primo pobre e muito longínquo de Maio de 68. Não apenas na maciça participação de jovens e estudantes, na caótica desorganização (Maio de 68 era bem mais estruturado), na rejeição do sistema político.
As maiores semelhanças são de essência: não querem conquistar o poder, mas, num caso, o de 68, "mudar a vida", no outro, "mudar o Brasil".
O Movimento Passe Livre é muito mais prosaico no ponto de partida: o protesto contra o aumento das passagens. Se desta vez o protesto "pegou", foi porque o descaso com a inflação provocou o agravamento dos conflitos distributivos, como dizem os economistas.
O MPL não tem nem de longe a radicalidade universal do sonho utópico de Maio de 68. Tampouco se compara com os parisienses no sopro poético de buscar no Manifesto Surrealista a inspiração para inesquecíveis slogans como: "Seja realista: exija o impossível!".
Não obstante, os manifestantes brasileiros não carecem de virtudes estimáveis. Restabeleceram o exercício direto da cidadania, demonstraram que o mar de corrupção não afogou a consciência moral dos jovens, revelaram senso de hierarquia de valores e prioridades superior ao de um governo empenhado em anestesiar os cidadãos com o desperdício circense da Copa.
Onde os nossos jovens se meteram num beco sem saída foi na rejeição em bloco de toda a política. Se quiserem purificar o sistema político, terão de enfiar as mãos na massa, canalizar a insatisfação para as eleições, único meio legítimo de conquistar o poder e mudar a sociedade.
Os discípulos de Marcuse não queriam virar governo por crerem que todo poder é dominação e alienação. Condenaram-se à impotência e ao niilismo: não é de surpreender que tenham dado lugar aos movimentos terroristas dos anos de chumbo.
Nosso movimento é uma manifestação a mais da crise mundial da democracia representativa. A saída, porém, está em construir mecanismos de participação direta que corrijam os desvios do sistema. Como, por exemplo, o "recall", a revogação do mandato pelos eleitores.
Não será fácil, mas um foco claro como esse é mais exequível do que esperar que um sistema irremediavelmente sórdido e corrupto se reforme sem pressão irresistível do povo.
A euforia das passeatas, a intoxicação de se sentir ator e sujeito do próprio destino, traz de volta o que ensinavam os gregos: a mais nobre expressão da vida humana é participar do governo da cidade. Para isso, é preciso ter, como dizia Celso Furtado, uma "fantasia organizada".
Não se pode ter manifestação sem itinerário, sem segurança que elimine os provocadores, sem respeito à liberdade e propriedade alheia.


Na falta disso, cai-se no "espontaneismo". Na Espanha, espontâneo é aquele entusiasta de tourada que salta na arena para tourear com o paletó. Quase sempre acaba em tragédia e chifrada...

Folha de S.Paulo, 24/6/2013

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