2 de maio de 2011

Políticas alternativas para maior oferta de trabalho qualificado Formação do capital humano depende da qualidade do professor e do esforço do aluno.

02 de maio de 2011
  Valor Econômico | Especial



A escassez de mão de obra qualificada é um dos mais importantes componentes do "Custo Brasil". Se a renda per capita continuar crescendo por volta de 3% ao ano, a demanda por trabalhadores escolarizados irá aumentar a taxas elevadas.
Por outro lado, a taxa de crescimento da população, um dos determinantes da taxa de crescimento da oferta de trabalho qualificado, vem se reduzindo consistentemente nos últimos anos. Para que o equilíbrio seja mantido, será necessário melhorar a produção de capital humano no Brasil. Do contrário, o descompasso entre a rápida aceleração da demanda e a lenta expansão da oferta irá limitar o desenvolvimento econômico e social da nação.
Apenas 30% dos alunos que iniciam o ensino básico terminam o segundo grau e meros 17% matriculam se na universidade. Em sua grande maioria, esses alunos vêm de famílias de melhor nível sócio econômico.
Assim, para elevar a produção de capital humano, ou seja, para aumentar as taxas de graduação do ensino médio, ensino técnico e a proporção de jovens que entram na universidade, deve-se aumentar a escolaridade das crianças de famílias mais carentes, como já se busca hoje no Brasil, e, ao mesmo tempo, qualificar essa formação.
Este artigo apresenta o que a pesquisa sobre formação de capital humano tem a contribuir para a solução do problema estrutural de baixa oferta de trabalho qualificado no Brasil. As conclusões desta pesquisa sustentam que o processo de formação de capitalhumano é dinâmico e sinérgico. Por dinâmico, entende-se que os problemas que levam os estudantes de classe social mais baixa a abandonarem a escola têm origem na primeira infância e devem ser enfrentados e solucionados nesse período.
Por sinérgico, compreende-se que a qualidade da escola depende da qualidade dos professores e do comprometimento e engajamento dos alunos e suas famílias com a educação. Juntas, essas propriedades sugerem uma política educacional que, por ter sido implementada e bem sucedida em contextos semelhantes ao caso brasileiro, deve ser amplamente discutida por nossa sociedade.
O processo educacional é dinâmico.
As habilidades que aprendemos nos primeiros anos afetam a nossa capacidade de aprender outras habilidades, mais complexas, que nos são ensinadas em estágios posteriores de nossa vida. Por exemplo, aos 5-6 anos de idade, as crianças de elevado nível socioeconômico já têm um bom domínio da leitura e possuem um rico vocabulário.
Infelizmente, essa não é a realidade para as crianças de famílias mais carentes. As crianças que têm leitura fluente e vocabulário extenso terão facilidade em decodificar a informação contida nos livros de matemática; outras, não terão a mesma sorte. A dificuldade de compreensão da leitura e o reduzido vocabulário tornam o aprendizado de matemática muito mais difícil.
A acumulação de deficiências gera um efeito cascata. A criança que não dominou a leitura e a matemática terá ainda mais dificuldade para entender os conceitos da física. Esse efeito cascata está presente ao longo de todo o processo educacional, mas prestamos muito mais atenção na sua consequência final que ocorre no momento em que os adolescentes fazem os exames para o ingresso no ensino superior. Como sabemos, a variabilidade nas notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são explicadas, em grande parte, pela condição socioeconômica dos jovens. A pesquisa sobre formação de capital humano comprova que uma parcela substancial dessa variabilidade revelada pelo Enem é determinada pelas condições de desenvolvimento da criança aos cinco ou seis anos de idade, antes mesmo de elas começarem a frequentar a escola.
Essa mesma pesquisa nos ensina que parte das diferenças encontradas na adolescência pode ser parcialmente eliminada caso intervenções sejam feitas logo nos primeiros anos de vida da criança. Isso foi confirmado por alguns estudos experimentais, como o projeto da Pré-Escola Perry, que funcionou de 1961 até 1965, no Estado de Michigan, nos EUA. Nesse estudo, as crianças de famílias extremamente carentes foram matriculadas aos três anos de idade, por um período de dois anos letivos. Cada classe tinha entre 20 e 25 alunos, e quatro professoras. As aulas, com duração de 2h30, ocorriam todos os dias da semana durante o ano escolar. Além de ensinarem, as professoras visitavam as famílias uma vez por semana, por 1h30 para conversarem com as mães sobre o progresso de seus filhos na pré-escola.
Programas similares são o "Abe cedarian", da Carolina do Norte, "os Pais e Filhos", da cidade de Chicago e o "Head Start", esse em operação nos EUA. Esses programas desenvolveram e implementaram um currículo e uma pedagogia específicos para o desenvolvimento das crianças carentes. Com isso, é importante ressaltar que o pleno desenvolvimento dessas crianças não será promovido por uma política que aumente as vagas em creches, mas sim por uma política que incentive a aplicação de um currículo específico, por meio de um método específico, por professores qualificados. Por essa razão, as estatísticas que devemos acompanhar são as que nos informam sobre a qualidade do ensino infantil e não as que nos informam sobre a quantidade de novas vagas em creches que foram criadas.
A evidência desses programas mostra que eles reduziram, substancialmente, a repetição escolar e aumentaram a taxa de graduação no ensino médio. A longo prazo, eles promoveram maior empregabilidade, maiores salários e menor criminalidade. Estudos recentes comprovaram que os programas modificaram a capacidade das crianças em planejar e executar tarefas, de ter disciplina para perseguir objetivos, e ter paciência para trabalhar duro no presente e esperar pelos frutos que serão colhidos no futuro. Essas dimensões do capital humano são muito importantes para o sucesso na escola, no mercado de trabalho e na vida em geral. Isso nos ensina que "qualidade" de mão de obra deve ser medida não só por conhecimento técnico, mas também por uma atitude de responsabilidade em relação às obrigações profissionais.
O processo de produção de capital humano não para na primeira infância. Ele continua no próximo estágio da vida e ocorre primordialmente na escola. Portanto, uma boa política educacional deve buscar melhorar a qualidade do ensino fundamental e do ensino médio. Certamente, para isso, é necessário reconhecer que o processo educacional é sinérgico. Uma escola se faz, essencialmente, por seus professores e alunos. Hoje em dia, o fator mais discutido é a qualidade dos professores. Os países que produzem alunos proficientes são aqueles que contratam e retêm os melhores profissionais para a carreira de professor. Por um lado, isso requer apresentar um plano de carreira que ofereça uma remuneração digna e prestígio.
Por outro lado, isso requer uma estratégia de administração de recursos humanos que identifique e elimine os profissionais que não forem suficientemente capacitados. Ambos requisitos podem ser solucionados com uma gestão competente ao nível da direção da escola ou, conforme o caso, do poder público.
Entretanto, é importante lembrar que a qualificação do professor é apenas um dos fatores que determinam o sucesso ou fracasso do sistema educacional brasileiro.
A pesquisa nos mostra que os alunos têm um papel ativo no processo educacional. Este fato invalida a analogia escola-empresa. Em uma empresa, o cliente faz um pedido e recebe o produto ou serviço contratado mediante pagamento. Em uma escola, o aluno é ao mesmo tempo o cliente (ele "compra" capital humano) e o trabalhador (ele participa, junto com o professor, na produção de capital humano).
A quantidade e a qualidade do capital humano produzido pela escola é o produto da qualidade do professor e do esforço do aluno. A existência e a relevância dessa sinergia entre professores e alunos é comprovada por pesquisa em andamento na Universidade da Pensilvânia.
A sinergia nos diz que é possível produzir bastante capital humano se conseguirmos aumentar, ao mesmo tempo, o esforço dos alunos e a qualidade e o empenho dos professores. Por outro lado, ela nos diz que políticas que foquem apenas o empenho dos professores, como pagamento de bônus salarial por desempenho, terão um impacto modesto na formação de capital humano, fato encontrado em pesquisas recentes.
Essa evidência nos mostra também que o problema educacional que aflige as escolas brasileiras não pode ser reduzido simplesmente a um problema de gestão.
Ambos são elementos importantes e se coadunam para a formação educacional de qualidade.
A compreensão da importância dessa sinergia nos permite confrontar dogmas e preconceitos enraizados em certas partes do sistema educacional. Uma forma de preconceito particularmente cruel é o da baixa expectativa, que produz profecias que são auto realizáveis.
Ele é racionalizado pelo pressuposto de que a escola não tem instrumentos disponíveis para compensar a carência e a falta de estrutura que as crianças de baixo nível socio econômico enfrentam em casa. Surge, daí, a baixa expectativa sobre o desenvolvimento intelectual e socio emocional das crianças carentes. Os professores, baseados nessa baixa expectativa, podem se convencer que não faz sentido exigir desses alunos o mesmo esforço e desempenho de estudantes de melhor nível socioeconômico.
A baixa exigência faz com que os alunos se esforcem pouco, apenas o suficiente para atingirem os modestos objetivos que lhes foram propostos. O resultado de pouco empenho dos professores e alunos só pode ser um conjunto de alunos que aprendem pouco que a escola pode assegurar um ambiente que permita às crianças carentes superarem as adversidades que encontram no lar. Isso pode ser confirmado pela pesquisa que avalia a eficácia de programas como "Conhecimento é Poder" (KIPP) e a "Área das Crianças do Harlem" (HCZ). Esses novos programas educacionais nos EUA, voltados para o atendimento de alunos de famílias muito carentes, têm registrado sucesso na produção de capital humano. Em comum, eles têm um currículo intenso e comparável aos das melhores escolas particulares, horário integral, aulas diárias de reforço para alunos com dificuldade e um ano letivo que é mais longo. Os professores são cobrados, diariamente, pela qualidade das classes, tarefas e apoio que oferecem aos seus alunos.
Os alunos são cobrados para que compareçam e participem ativamente de todas as aulas, mantenham a disciplina e façam, perfeitamente, todas as tarefas que lhes forem passadas a cada dia. Eles são avaliados e responsáveis por seu desempenho durante todo o ano letivo. Para evitar o efeito cascata, as deficiências são sanadas tão logo elas sejam identificadas pelas constantes avaliações.
O conhecimento gerado pela literatura sobre a formação de capital humano, exposto ao longo desse artigo, nos permite analisar políticas alternativas para aumentar a oferta de trabalho qualificado no Brasil. Por exemplo, qual seria o impacto de uma política que aumente as vagas no ensino técnico para atender os trabalhadores desempregados e os beneficiários do Bolsa Família? Dado o sucesso do ensino técnico no Brasil e o grande estoque de mão de obra não qualificada, a primeira impressão é de que essa iniciativa pode atingir os resultados desejados. Entretanto, uma análise mais profunda, que leve em consideração as características do processo de formação do capital humano, nos deixa menos otimistas. Pela ótica da dinâmica do processo de capital humano, essa intervenção não faz sentido pois é difícil ensinar tarefas complexas para pessoas que ainda não dominaram habilidades mais simples.
Pela ótica da sinergia, deve-se reconhecer que o sucesso do ensino técnico se explica não só pela qualidade e empenho do corpo docente, mas também pela elevada qualidade e comprometimento do seu corpo discente. Não existe garantia que o ensino técnico, como estruturado hoje em dia, irá conseguir reproduzir esse sucesso com uma população com características muito distintas. Infelizmente, a literatura que investigou o impacto desse tipo de política em muitos países onde ela foi implementada conclui que ela tem impacto reduzido na produção de uma mão de obra qualificada.
Para resolver o problema estrutural de baixa qualidade da mão de obra no Brasil, o país necessita de uma política que coloque em atuação um sistema educacional que esteja preparado para sanear, no momento correto, os déficits de desenvolvimento que aparecem ao longo de todo o processo de formação do capital humano. Essa é, sem dúvida, uma tarefa difícil. Felizmente, a pesquisa sobre a produção de capital humano prova que a receita para o sucesso já existe.
Flavio Cunha é PhD em economia pela Universidade de Chicago e professor da Universidade da Pensilvânia.
FAC-SÍMILES

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