13 de setembro de 2012

O Supremo e a liberdade acadêmica - Joaquim Falcão


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Alguns juízes estão proibindo a publicação ou retirando de circulação biografias recentes a pedido de herdeiros ou do próprio interessado. Exemplos são as filhas de Garrincha tentando proibir a biografia de autoria de Rui Castro; Roberto Carlos, a sua feita por Paulo César de Araújo; e a sistemática oposição de Wilma Guimarães Rosa a qualquer outra biografia de seu pai, Guimarães Rosa, que não seja a que ela própria fez.

O fundamento desses juízes é o artigo 20 do Código Civil, que diz: "Salvo se autorizadas (...) a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas (...) se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". Diz ainda que, "em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes".

Contra essas decisões, a Associação Nacional dos Editores de Livros entrou com ação no Supremo Tribunal Federal. Argumenta que esses artigos não podem ser interpretados de maneira a ferir a liberdade de expressão e o direito à informação. Pede que o STF aja.

Além de ferir a liberdade de expressão e comunicação, as decisões atentam contra outros direitos fundamentais, sem os quais progresso e civilização inexistem: direito de pesquisar e direito de ensinar. O art. 206 da Constituição diz textualmente: "O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: pluralismo de ideias, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e saber".

Biografias, históricas ou mesmo de pessoas vivas, são essenciais para o progresso de qualquer ramo do saber — para se entender o próprio desenvolvimento do pensamento, inclusive científico. Sem as biografias de Jung e Freud e suas tempestuosas competições sexuais ou sexualidades com Sabine Spielrein, menos entenderíamos os conflitantes caminhos da psicanálise. Sem termos conhecido as relações maritais ocultas de Thomas Jefferson com escrava negra, menos entenderíamos o fato de a Constituição americana não ter inicialmente considerado o negro escravo como cidadão igual. Todo o Nelson Rodrigues que hoje se comemora como patrimônio literário do Brasil seria menor se biógrafos não tivessem trazido à tona seus próprios traumas psicológicos.

Ensino sem ampla liberdade acadêmica não é ensino. É doutrinação. É violação do espírito. Sem a liberdade de pesquisar, ensinar e a correlata de publicar, reduz-se o ensino de nossa história política, econômica ou mesmo científica. Reduz–se o Brasil aos seus oficialismos, sejam governamentais ou, como agora, familiares.

Como a lei não estabelece se esse direito pertence apenas à primeira ou à segunda geração de herdeiros, centenas de membros da família real brasileira, por exemplo, poderiam até hoje proibir relatos de D. Pedro I e a Marquesa de Santos, ou de D. Pedro II e a Condessa de Barral. Seriam coproprietários da história do Brasil.

Da mesma maneira, inexiste pesquisar sem o direito de escolher hipóteses, publicá-las, discuti-las, errar, acertar, confirmá-las ou refutá-las. Assim como não se pode pedir a um físico que acerte todos os seus experimentos, não se pode pedir a biógrafo que compatibilize todo seu trabalho com os interesses familiares. Para desenvolvimento de qualquer saber, hipóteses não comprovadas são tão importantes quanto hipóteses comprovadas. Acertar, sabemos todos, inclui o indispensável direito de errar.

Ensino e pesquisa não se materializam, não ganham vida, não cumprem sua função civilizatória, sem a divulgação, a publicação, por qualquer dos meios, do pensamento. A liberdade acadêmica inclui a liberdade de criar, pesquisar, ensinar e, inevitavelmente, a de divulgar e publicar.

Essas liberdades não podem ficar sob a espada de Dâmocles dos eventuais interesses financeiros ou mesmo culturais, psicológicos ou ideológicos de herdeiros, por mais legítimos que algumas vezes possam ser. Nos casos em que houver má-fé ou dolo dos biógrafos e editoras, a Justiça saberá discutir e impor as responsabilidades — mas depois; não pode pela Constituição proibir antes.

Se assim o fizer, como estão fazendo, corre-se o risco de recriar capitanias hereditárias. Não de nosso território, mas de nossa história e de nosso pensamento. Capitanias hereditárias de nós mesmos. Somente alguns nos herdam.

CORREIO BRAZILIENSE
13/09/2012 

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