Folha de S.Paulo, 1/12/2012
Retrocesso e divulgação seletiva de dados
Enquanto o mundo vislumbra a erradicação do HIV e uma geração livre da Aids, o Brasil retrocede no combate à doença, vive da divulgação seletiva de dados e do ufanismo diante de uma epidemia supostamente controlada.
A Aids está fora de controle no país em várias regiões, em grandes centros e em grupos vulneráveis.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, um em cada seis homossexuais está infectado pelo HIV, prevalência maior que em populações africanas. Em resposta, silêncio e censura: a campanha de prevenção dirigida aos gays no carnaval deste ano foi vetada pelo governo federal para agradar parlamentares fundamentalistas. Contaminar com religião a saúde pública é um dos sintomas da falência da política outrora exemplar.
Sem diagnóstico, até hoje milhares de brasileiros com HIV chegam tarde aos serviços de saúde, com risco de morte em razão do atraso no início do tratamento.
Reduzida praticamente a zero em países como Botsuana e Suazilândia, a transmissão do vírus da Aids da mãe para o bebê persiste no Brasil, vergonha nacional que expõe falhas inadmissíveis do pré-natal.
São mais de 30 mortos de aids por dia no país, situação tão banalizada quanto a atual onda de homicídios. No Norte, Nordeste e Sul morrem hoje mais pessoas de Aids do que na época em que não existiam os medicamentos antirretrovirais.
Sem apoio, organizações não governamentais fecham as portas ou paralisam atividades de prevenção, acolhimento e defesa de direitos.
Não bastasse o fato de governos estaduais e prefeituras deixarem de usar milhões de reais repassados pelo Ministério da Saúde para ações de combate à Aids, um movimento de secretários de saúde tenta legitimar o desvio de recursos para outros fins.
Além dos medicamentos garantidos pelo SUS, sempre se destacaram os serviços e o pessoal comprometidos com o acompanhamento dos pacientes. Pois nossos hospitais e ambulatórios vem sendo entregues a organizações privadas e estão superlotados, com alta rotatividade de profissionais, com ameaça de fechamento de leitos, sem especialistas e sem o vínculo médico-paciente essencial ao tratamento de uma doença crônica.
Por tudo isso, mais de 400 pesquisadores, ativistas e entidades divulgaram manifesto pedindo mudanças nos rumos do programa brasileiro, crítica ecoada por especialistas estrangeiros durante a última Conferência Internacional de Aids, em Washington.
Veio também desse evento o otimismo em relação à cura e a convicção de que as ferramentas hoje disponíveis, combinadas com a promoção de direitos humanos, podem evitar novas infecções, melhorar a saúde das pessoas com HIV e salvar vidas em escalas jamais imagináveis.
O Brasil precisa dizer se fará parte da virada do jogo contra a Aids, o que depende de uma politica corajosa que assuma a realidade da epidemia e articule melhor prevenção, teste e tratamento.
O país tem condições de dobrar o numero de pessoas em terapia antirretroviral, chegando a 500 mil pacientes, de renovar as campanhas preventivas paradas no tempo, de massificar o acesso a preservativos, de fazer chegar o teste rápido de HIV às populações mais afetadas, de incluir, em complemento à prevenção, o uso de medicamentos antes ou depois da exposição sexual ao vírus.
É urgente recuperar a qualidade dos serviços públicos especializados em Aids, fortalecer as ONGs, retomar a quebra de patentes e ampliar a produção nacional de antirretrovirais genéricos.
Sem ousadia, sem novos e excepcionais compromissos políticos, o Brasil perderá essa luta.
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