8 de março de 2014

A cor da mente ,Cristovam Buarque


Nos anos 70, a televisão mostrou uma série com o nome de “Raízes”, contando a trajetória de uma família de negros americanos, desde seu passado na África. A série emocionou centenas de milhões de pessoas ao mostrar o sofrimento de sucessivas gerações que tinham em comum a cor da pele e a escravidão por serem negras.
Trazida para o presente, a série “Raízes” pode ser escrita sob outro ângulo: as sucessivas gerações de pessoas carregando a característica do analfabetismo. A genealogia de um analfabeto mostra quase toda sua linha de transmissão no analfabetismo. Raramente o filho de alfabetizados cai no analfabetismo. Já o analfabeto adulto é filho e neto de analfabetos.
Mas diferentemente da transmissão da escravidão pela cor irremovível, a transmissão do analfabetismo decorre da falta de programas educativos para sua erradicação. Porque a cor da mente é mutável pela educação.
Muito provavelmente, os 13 milhões de analfabetos de hoje são descendentes dos 6,5 milhões de analfabetos que povoavam o território brasileiro em 1889. Naquele ano, a elite republicana fez uma bandeira com um lema escrito, mesmo sabendo que seus cidadãos eram incapazes de reconhecê-lo porque não sabiam ler. E desde então 125 anos se passaram sem um gesto enfático e duradouro que abolisse a tragédia, que permitisse a todos os brasileiros lerem a sua bandeira.
A repetição genealógica do analfabetismo é causada pelo descaso com a educação das crianças, que deixa aberta a torneira por onde surgem novos analfabetos adultos, e pela falta de um programa concreto e persistente para a erradicação desta tragédia entre os adultos.
Para resolver o problema em cinco anos seria necessária a mobilização de 130 mil jovens bolsistas ao custo anual inferior a R$ 1 bilhão, e mais R$ 2 bilhões de outros gastos operacionais.
Essa era a intenção do Ministério da Educação no primeiro ano do governo Lula ao criar uma Secretaria Extraordinária da Erradicação do Analfabetismo, destinada a gerir o programa Brasil Alfabetizado.
A secretaria chegou a formular o Programa de Apoio ao Estudante, proposto no projeto de lei nº 2.853/2003, pelo qual os alunos de universidades particulares receberiam bolsas para pagar seus estudos, desde que aceitassem exercer atividades relacionadas à alfabetização de adultos, por seis horas semanais, durante um dos semestres de seus cursos.
Além disso, foram implantados programas de “leituração” para manter a alfabetização conquistada. Em 2004, a secretaria foi extinta, e o programa perdeu vigor; o PAE se transformou em Prouni sem exigência aos beneficiados. O resultado é que o problema continua e, em 2013, houve aumento no número de analfabetos: os 6,5 milhões de 1889 duplicaram, em 2013, para 13 milhões.
Quem sabe se, neste ano, algum candidato a presidente vai apresentar o compromisso e dizer como, quanto custa e de onde sairão os recursos, financeiros e humanos para romper a genealogia do analfabetismo, mudando a cor da mente desses brasileiros.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

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