3 de julho de 2014

SAMIRA BUENO E THEO DIAS , Letalidade policial

Folha de S.Paulo, 3/7/2014
O controle da polícia ainda não é política de Estado. Polícia violenta é fator de insegurança e de ineficiência no controle do crime
Um mês após Fernando Grella Vieira assumir a Secretaria de Estado da Segurança Pública, São Paulo fechou 2012 com crescimento de 14% na taxa de homicídios, revertendo mais de uma década de redução. Registrava também aumento de mortes por policiais em serviço e fora (766) e recorde de mortes de policiais em serviço e em folga (105).
Em clima de crise, o secretário declarou em discurso de posse que combate ao crime e respeito aos direitos humanos não são metas excludentes. O recado veio acompanhado de medidas: regulamentação da conduta policial, incluindo socorro em ocorrências com lesão grave ou morte, e substituição do termo "resistência seguida de morte" por "morte decorrente de intervenção policial".
Em 2013, os números pareciam sensíveis ao novo discurso: redução de quase 40% nas mortes cometidas por policiais em serviço (364) e retomada de queda dos homicídios. Intrigava, contudo, o crescimento de 30% das mortes por policiais fora de serviço (243), totalizando 595 mortes. O aumento da letalidade na folga indicaria resistência aos esforços de controle da Secretaria de Segurança Pública?
Nos primeiros cinco meses de 2014, o quadro voltou a se agravar: 395 mortos pela polícia, dentro e fora do horário de serviço. Mantida a tendência, a letalidade policial deste ano será superior à de 2012.
A partir do governo Mario Covas (1995-2001), após os anos de chumbo da era Fleury (1991-95), São Paulo adotou medidas importantes de controle das polícias: ouvidoria, divulgação de índices de letalidade e de estatísticas criminais, programa de acompanhamento psicológico de policial envolvido em ocorrência com morte, Comissão para Redução da Letalidade, policiamento comunitário, controle da discricionariedade policial por meio de procedimentos operacionais padrão etc.
Mas várias ações não tiveram sequência, foram esvaziadas entre uma gestão e outra, a exemplo da Comissão para Redução da Letalidade, que não se reúne. Mudanças nos nomes ou na retórica do comando ocasionam considerável oscilação nos níveis de letalidade. É um histórico de avanços e retrocessos a indicar que o controle da polícia ainda não se converteu em política de Estado. Sem profissionalismo e transparência, a polícia não tem a confiança do cidadão. Sem confiança, não há participação social nas ações voltadas à produção de segurança urbana. Polícia violenta é fator de insegurança e de ineficiência no controle do crime.
Letalidade policial deveria ser um dos indicadores estratégicos do sistema de metas em implantação pelo governo paulista, que prevê bonificação de policiais por êxito na redução do crime. O governo federal, por sua vez, deveria tirar do papel a portaria interministerial nº 4.226/10, que vincula repasses de recursos aos Estados à observância de medidas para regulação do uso da força policial.
Judiciário e Ministério Público poderiam ser mais ativos no controle de abusos e na cobrança por padrões organizacionais de atuação policial que resultem em maior eficiência e menos mortes. Em alguns países, é comum a responsabilização civil dos escalões superiores ou do poder público por arbitrariedades policiais. O prejuízo econômico e político causado por essas ações é fator indutor de reformas.
Não se nega a legalidade do uso da força pela polícia, mas os números evidenciam uma realidade de abusos, que conta com a tolerância da sociedade brasileira e de suas instituições (não só da polícia). Basta ver a ausência do tema nas eleições aos governos estaduais e à Presidência da República.

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