25 de janeiro de 2012

Que tal fechar as escolas ruins? - Gustavo Ioschpe


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No apagar das luzes da gestão Haddad, o Mi­nistério da Educação decidiu cortar 50000 vagas de cursos universitários de "baixa qualidade", que não tinham atingido a nora mínima no mecanismo de avaliação do ministério. Mais de 30000 das vagas cortadas são da área de saúde. A lógica dos cortes é elevar a qualidade do sistema universitário, fazendo com que as melho­res instituições possam crescer adicionando as va­gas subtraídas das más instituições e a população seja protegida de profissionais despreparados.

A maioria das pessoas parece concordar com a medida, e até jornais liberais a apoiaram em edito­rial. Se você concorda com ela, gostaria de ir um passo adiante e recomendar que também sejam cortadas todas as vagas de escolas de educação básica de má qualidade. Se a lógica vale para o sistema de ensino superior, por que não haveria de valer para a educação básica, que é certamente ainda mais importante para o país e açambarca um número consideravelmente mais alto de alunos (51 milhões, contra 6 milhões do ensino superior)? O corte de matrículas na educação básica faz mui­to mais sentido do que no ensino superior.

Primei­ro, porque, enquanto os alunos da educação superior são jovens e adultos -que têm a capacidade cognitiva para passar por todo um sistema educa­cional e também por um vestibular ou Enem e, portanto, possuem todas as condições de saber qual é a qualidade da faculdade em que estão in­gressando, os alunos que entram em uma escola na 1ª série têm reduzidas (para não dizer nenhu­ma) condições de saber a qualidade daquela esco­la. O primeiro indicador oficial de qualidade de uma escola, o Ideb, é divulgado a partir do 5° ano (o MEC tem outro, que mede a alfabetização nas primeiras séries, mas se recusa, para não desagradar às corporações do ensino, a torná-lo compulsó­rio ou publicar seus resultados). Em segundo lugar, frequentar o ensino superior é uma escolha, en­quanto a educação básica é compulsória; é mais lógico proteger alguém de um mal obrigatório do que de outro, opcional. Finalmente, faz um grande sentido financeiro adiantar a extinção das vagas. Se quem será mau profissional deve ficar na ignorân­cia, faz mais sentido começar o corte lá pelo 3° ou 4° ano da escola. Como é óbvio que um aluno analfabeto jamais poderá ser um profissional competente. para que gastar anos de sua vida e muitos reais com me­renda, transporte, livros, professores e es­colas se ele já está condenado? A maioria dessas pessoas vai sair da escola mesmo ao longo dos anos - temos 3,2 milhões de alunos na 1ª série do ensino fundamental, mas só 2,2 milhões no último ano do ensino médio-, então por que não tomar o processo mais objetivo e chancelado pelo governo, em vez de causar prejuízos aos cofres públicos e perda de tempo e dinheiro aos alunos e seus pais?

Talvez você esteja pensando que a educação é um direito do cidadão; não poderia, portanto, ser suprimido. Em tese, concordo. Mas veja os resulta­dos da Prova ABC, aplicada no ano passado pelo Inep e por ONGs em alunos do 3° ano: ela mostrou que quase 60% dos estudantes não aprendem o mí­nimo esperado para essa série em matemática e quase 45% em leitura. Não dá para chamar de "edu­cação" o que ocorre em pelo menos metade das nossas escolas, portanto. Cortar vagas, nesses ca­sos, não seria homicídio, mas eutanásia.

Como você gosta do método do MEC para o ensino terciário, certamente não se oporá à sua utiliza­ção na educação básica. O MEC corta vagas dos cursos que tiveram notas I e 2 no Índice Geral de Cursos (IGC). Na educação básica. o "índice seme­lhante é o Ideb. Diferentemente do lGC, que vai de O a 5, o ldeb vai de

O a 10. Para chegar ao mesmo nível de qualidade nas escolas, basta cortar as vagas daquelas que têm notas de O a 4 no Ideb, portanto. Como a média do país no Ideb está em torno de 4, e como a distribuição dessas notas deve ser gaussia­na, estimo que cortar vagas das escolas com Ideb igual ou menor que 4 subtrairia aproximadamente metade do total de alunos na educação básica. As­sim, em pouco tempo. provavelmente nem teríamos mais de cortar vagas nas universidades, pois todos aqueles que passassem pela faxina e chegassem ao ensino superior certamente seriam muito capacita­dos. Também acabariam os problemas de inflação de salários em profissões como babás, empregadas e peões da construção civil, pois o que não faltaria seria gente totalmente ignorante no mercado.

Claro, o que vai acima é um exercício de absur­do. As pessoas só não o percebem dessa maneira quando é aplicado ao ensino superior porque esta­mos falando de 50000 pessoas, e não de 50 milhões.
Na verdade, nem são 50000 as pessoas afetadas, porque, como mostrou reportagem da Folha de São Paulo, 73% das vagas cortadas estão ociosas, ou seja, as instituições as oferecem, mas os alunos não as preenchem.

Cortar vagas em institui­ções de ensino, no Brasil de hoje, é não apenas uma estu­pidez, mas crime de lesa-pá­tria. Porque o Brasil está fra­cassando terrivelmente em formar jovens com ensino superior, que são - e serão cada vez mais - determi­nantes para o desenvolvi­mento do país. O Brasil matricula pouco mais de 20% de seus jovens no ensino su­perior. Alguns de nossos vi­zinhos latino-americanos, como Peru, Chile, Venezuela e Uruguai, têm taxas de matrícula que são o dobro. Paí­ses da Europa têm taxas de matrícula na casa dos 50% a 70%. E alguns países, como Corei a do Sul, EUA e Finlândia, estão chegando perto da univer­salização do ensino superior. Imagine para que paí­ses irão os empregos com maiores salários, que dependem da capacidade de geração de bens e ser­viços de alto valor agregado. Imagine que países desenvolverão a pesquisa tecnológica inovadora. Nós ou eles?

A ideia de que é bom cortar vagas é uma mistu­ra de preguiça intelectual com realismo mágico. Porque as pessoas ouvem falar que uma enfermeira matou um paciente ao colocar vaselina em vez de soro na injeção e então, indignadas e pensando com o fígado, bufam: "Precisamos proteger a sociedade de profissionais como esses! Vamos atacar o pro­blema na fome, fechando as más escolas formado­ras!". O.k. Vamos presumir que o lGC seja um bom indicador para medir a qualidade dos cursos uni­versitários (não é) e também que o principal culpa­do pelo fato de a vaselina ter sido usada no lugar de soro seja a formação da enfermeira, e não a desor­ganização do hospital, o cansaço da enfermeira ou simplesmente a falibilidade humana. Então cortamos a vaga, e evitamos que os "maus profissionais" se tornem enfermeiros, médicos ou contadores ­sim, o MEC cortou vagas dos cursos de contabili­dade. já que todos nós sabemos que um contador incompetente pode tirar milhares de vidas (?). Multiplique isso por 1 000 ou 50000. O que acontece? Digamos que cada "mau profissional" atenda dez clientes por dia. Então serão 500000 clientes desatendidos por dia. Não com um mau atendi­mento com um atendi­mento um pouco abaixo do ideal: zero. Em vez de terem maus contadores, médicos ou enfermeiros, as pessoas não terão ne­nhum. O que acontece quando são subtraídos de um mercado profissionais para os quais há demanda? Se há uma economia de mercado, em que os preços se reajustam livremen­te, o preço cobrado pelos profissionais que ficam no mercado sobe. Para os ricos, isso não fará muita di­ferença. Mas para os pobres o aumento de preço pode ser a diferença entre ter condições de ser aten­dido e não ter. Se os preços forem controlados, co­mo no sistema público, por exemplo, as enfermei­ras e os médicos que ficarem não poderão cobrar mais, mas terão de atender mais pacientes. Como o tempo de trabalho é finito e a oferta de gente quali­ficada é menor do que a demanda por seus serviços, isso significa que os pacientes demorarão mais para ser atendidos, ou morrerão antes do atendimento. É fácil ficar indignado com vaselina na seringa, por­que vira noticia. Mais difícil é lamentar os milhares de casos anônimos de gente que morre em casa por não ter atendimento médico ou por ser atendida por um ótimo médico estafado por ter de dar conta de uma demanda sobre-humana. Esses casos permane­cem no limbo. Assim como o dos milhares de pre­sos pobres e inocentes que não podem pagar um advogado e em locais onde não há defensores pú­blicos que cheguem.

O realismo mágico a que me referia é o de pes­soas que acreditam que o mundo é binário, em que há profissionais bons e ruins, instituições boas e ruins, e que, se cortarmos as instituições ruins, é claro que suas vagas serão ocupadas pelas institui­ções boas, que formarão bons profissionais. Mas a realidade é mais complexa.

O aluno que frequenta uma universidade mal avaliada não o faz porque é burro ou está sendo en­ganado, e sim porque aquela é a melhor instituição em que conseguiu entrar, ou a mais barata com que seu bolso pode arcar. Se essa vaga for cortada, por­tanto, ele não vai estudar na USP nem na FGV. Vai ficar sem estudar. A tônica de um país em desenvol­vimento, como o nosso, é justamente a existência de
desequilíbrios: há mais demanda do que oferta, e não há gente qualificada para atender a todos. Não só na medicina, mas em todas as áreas, do conserto do cano ao transplante de medula. Não há como gerar atendimento de Primeiro Mundo a todos porque simplesmente não há gente que chegue com qualificação de Primeiro Mundo. É demagogia querer oferecer uma sensação de proteção contra erros. Erros acontecerão. A questão não é o que fazer para acabar com eles, porque isso é impossível, mas sim o que fazer para minorá-los. E a saída certamente passa por ter mais gente com alguma qualificação, não menos. É melhor ter geme com qualificação in­suficiente do que com qualificação nenhuma. Às vezes digo isso e as pessoas me perguntam:

"Mas você gostaria de fazer uma ponte de safe­na com um médico formado por uma dessas uni­versidades caça-níqueis que ficam em cima de uma padaria?". É claro que não. Nem eu nem ninguém. Num mundo ideal, só gostaria de ser operado pelo melhor médico do mundo naquela especialidade. Mas no mundo real a maioria das pessoas não terá dinheiro para se operar como melhor do mundo, e, mesmo que tivesse, esse profissional não teria tempo para atender a to­dos. No mundo real, para grande parte das pes­soas, ou elas vão ser operadas pelo médico ruim ou não vão ser operadas por ninguém. Se eu es­tivesse num avião e sofresse um infarto, é claro que gostaria que o meu vizinho de poltrona fos­se um cardiologista renomado. Mas, se não ti­ver essa sorte, prefiro que o vizinho seja um médico de quinta categoria, ou até mesmo um aluno dessa universidade-padaria, a que seja al­guém que teve de virar carteiro porque, justo no ano em que iria prestar o vestibular para medi­cina na única faculdade em que conseguiria en­trar, veio um burocrata de Brasília e resolveu cortar aquela vaga.

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