Ricardo Abramovay | Para o Valor, de São Paulo
05/04/2011
"Crossing the Energy Divide" - Robert U. Ayres e Edward H. Ayres. Wharton. 256
págs., R$ 22,32
s
O desperdício de energia não está apenas no combustível, mas nos próprios
materiais de que se fazem os veículos
É necessário desfazer a ilusão, difundida amplamente por Al Gore, de que
os Estados Unidos podem tornar-se independentes dos combustíveis fósseis
nos próximos dez anos. Mesmo que o esforço nessa direção seja
equivalente ao mobilizado durante a Segunda Guerra Mundial, levará ao
menos três décadas para que fontes alternativas substituam o petróleo na
matriz energética americana. Os custos adicionais da construção de novas
usinas nucleares, após o acidente de Fukushima, só tendem a dilatar esse
prazo.
Ao mesmo tempo, ninguém ignora que é exatamente nos próximos 30 anos
que o mundo vai enfrentar dois desafios civilizacionais inéditos: o primeiro
é o pico do petróleo, ou seja, o momento em que sua exploração entrará em
declínio terminal. O segundo, mais grave, refere-se ao fato de que as
emissões de gases de efeito estufa devem iniciar trajetória seriamente
declinante ainda na atual década, sob pena de se chegar ao final do século
com alterações climáticas capazes de provocar catástrofes das quais o
furacão Katrina oferece apenas uma pálida ideia.
A ponte que vai permitir a travessia para o fim da era fóssil não depende de
um graal energético supostamente contido no hidrogênio, no prometido
sequestro de carbono, nos biocombustíveis, nas turbinas eólicas ou na
descoberta de telúrio que viabilize o uso em larga escala do solar
fotovoltaico. Essas contribuições são relevantes, mas não garantem o
essencial: a transição para uma economia de baixo carbono. O mais
importante é alterar radicalmente a maneira como se faz a gestão da energia
no mundo contemporâneo - particularmente, nos Estados Unidos. E a
mudança tem que ocorrer ainda enquanto petróleo, carvão e gás forem os
combustíveis mais importantes da economia mundial.
Nos últimos 40 anos, Robert Ayres tem trabalhado na formulação de uma
teoria econômica em cujo centro esteja o reconhecimento de que a vida
social não depende apenas de capital e trabalho, mas também, e cada vez
mais, de energia e matéria. Por incrível que pareça, essa dependência não
integra o pensamento econômico que, desde o século XVIII, se desenvolve
separando-se da natureza e só considerando sua existência em momentos
de escassez, tratados sempre como episódios passageiros, antecâmaras de
nova bonança.
Neste livro, escrito com Edward Ayres (que durante muitos anos foi diretor
do Worldwatch Institute), Robert Ayres propõe não uma fórmula mágica e
sim um conjunto de políticas que sirvam como ponte para atravessar os
próximos anos. Travessia difícil (pois abala convicções e interesses
arraigados), mas indispensável e promissora para a sociedade e para o
mundo dos negócios.
É bem sabido que o crescimento da economia mundial apoia-se em ganhos
crescentes de eficiência energética: cada unidade de PIB é obtida com uso
cada vez menor de energia e materiais. A transição dos próximos trinta
anos exige, porém, que esses ganhos de eficiência sejam acelerados. É
tecnicamente possível, por exemplo, dobrar a quantidade de serviços úteis
que se extraem de uma unidade de energia nos Estados Unidos num prazo
bastante curto, garantem os autores.
A cogeração de energia, por exemplo, levada adiante por cerca de mil
indústrias americanas, poderia ser imediatamente multiplicada por dez. Isso
significaria garantir cerca de 10% da capacidade de geração de energia
elétrica americana sem gastar um barril de petróleo ou um grama de carvão,
e a custos bem menores que os envolvidos na construção de usinas
termelétricas. Mais importante ainda é constatar a impressionante
ineficiência das grandes centrais de energia elétrica movidas a carvão, que,
nos últimos 40 anos, mantêm um padrão tecnológico quase inalterado. No
cálculo dos autores, de cada sete unidades de trabalho potencial (ou seja, do
serviço realmente prestado pela oferta de energia) com base em usinas
elétricas a carvão, apenas uma unidade se transforma em algo útil para a
sociedade. É impressionante o contraste entre o avanço representado pelo
iPad e a base energética sobre a qual ele repousa.
Outro campo em que a eficiência pode estar mais no uso do que na
mudança da fonte de energia é a produção combinada de calor e
eletricidade (CHP, na sigla em inglês), que pressupõe o estímulo a formas
descentralizadas de energia - que se chocam com os interesses das grandes
usinas termelétricas. Enquanto nos Estados Unidos apenas 8% da energia
elétrica vem de CHP, a Dinamarca já chegou a 51%, a Finlândia a 37% e a
China a 18%.
Mas os padrões de consumo domiciliar também terão que ser alterados de
forma significativa: as residências alemãs consomem 210 kWh por metro
quadrado, em média. Nas novas construções, esse patamar caiu para 95
kWh e nas construções voltadas à economia de energia e materiais chega-se
a 20 kWh. Esse tipo de construção já avança na Europa desde os anos
1990, mas nos Estados Unidos a primeira ainda não tinha ficado pronta em
2009.
Essa mudança vai alterar igualmente o conceito de mobilidade. É difícil
imaginar algo energeticamente mais ineficiente do que duas toneladas de
aço, vidro e borracha para transportar um ser humano por vias
congestionadas. E é bom lembrar que os motores a álcool ou elétricos
pouco alteram essa ineficiência, que só será enfrentada quando a prestação
do serviço de mobilidade em condições adequadas a diferentes
necessidades for mais importante do que possuir um automóvel.
A ideia, tão corriqueira, de que se esses caminhos de transição fossem
tecnicamente viáveis e, de fato, positivos o mercado já os teria levado
adiante é falsa. As crenças e os interesses consolidados em torno dos atuais
padrões de produção e de consumo freiam seu avanço. Na verdade, a
construção do futuro energeticamente limpo já começou. Ela tem que ser
dramaticamente acelerada e, para isso, a condição é que a eficiência no uso
de energia e materiais passe a ocupar, de fato, o centro da inovação
tecnológica contemporânea. E é claro que isso não se refere apenas aos
Estados Unidos.
Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia
da FEA, do Instituto de Relações Internacionais da USP, coordenador
de seu Núcleo de Economia Socioambiental, pesquisador do CNPq e da
FAPESP. www.abramovay.pro.br
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