14 de janeiro de 2012

Miguel Nicolelis


O neurocientista que se acostumou a transformar o inimaginável em realidade
Roberta Jansen, O Globo
Odia 12 de junho de 2014 promete ser histórico para o Brasil. A abertura de uma Copa do Mundo em território nacional - a primeira desde 1950 - será como um sonho transformado em realidade para 190 milhões de torcedores. Fanático por futebol e neurocientista da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN), no Rio Grande do Norte, Miguel Nicolelis quer transformar um outro sonho em realidade neste mesmo dia. Quer que o pontapé inicial da partida de abertura, no estádio do Itaquerão, em São Paulo, seja dado por uma criança paraplégica - o maior gol já marcado pela ciência nacional.
- É uma oportunidade única para mostrar que o Brasil é mais que o país do futebol, para mostrar o alcance da ciência brasileira, uma questão de soberania nacional. A ciência faz parte da construção da democracia das nações modernas deste século, quando as sociedades serão chamadas para tomar decisões sobre o planeta e nossa espécie - defende Nicolelis, quase sem tomar fôlego, empolgado com a perspectiva. - Hoje, somos uma grande economia que produz commodities, mas este é o momento da guinada; precisamos entrar na era da economia do conhecimento, ampliar a nossa base científica e disseminar esse conhecimento na população.
Para realizar seu sonho, Nicolelis trabalha há mais de dez anos com afinco e uma maneira muito peculiar de encarar obstáculos: superando- os, um a um, sempre com propostas inusitadas, mesmo para os seus pares.
- Ele é um visionário que sabe pensar diferente e executar o que idealiza; desenvolveu uma maneira completamente distinta de lidar com o sistema nervoso e, ao mesmo tempo, sabe fazer as coisas acontecerem - resume a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ. - Essa história da Copa do Mundo, claro, não depende só dele, mas ele é extraordinariamente competente e entende o que é preciso fazer para chegar lá.
O grupo de pesquisa de Nicolelis nos EUA é um dos mais avançados do mundo num campo inovador de pesquisa, conhecido pelo pouco amigável nome de interface cérebro-máquina.
Resumidamente, o objetivo dessa linha de estudos é conseguir mover membros virtuais (externos ao corpo) apenas com a força da mente.
O feito é possível por meio de um chip implantado no cérebro, capaz de decodificar a atividade elétrica gerada pela intenção do movimento.
Esta intenção, por sua vez, é traduzida na forma de comandos digitais. São esses comandos que vão gerar movimento nos membros externos. A tecnologia ajudaria paraplégicos e tetraplégicos a retomarem os movimentos com a ajuda de próteses comandadas pelo cérebro.
- Ele fez o contrário do que todos os neurocientistas costumavam fazer, que era registrar a atividade dos neurônios para entender como eles representam o mundo externo - explica Suzana. - Nicolelis colheu informação da atividade dos neurônios para mover coisas no mundo externo.
A criança que dará o pontapé inicial da Copa do Mundo estará vestida com o protótipo do que o grupo do cientista chama de prótese inteligente - uma estrutura metálica articulada em pontos- chaves dos membros paralisados, que, num futuro um pouco mais distante, poderá estar disponível para todos que tenham lesões paralisantes.
Nicolelis garante que o exoesqueleto não seria nada parecido a um "robocop"; é, na verdade, um material extremamente leve.
- Será como um aparelho de reabilitação, uma prótese de corpo inteiro, que permitirá ao paciente realizar os movimentos - revela Nicolelis.
- Enquanto a pessoa usá-lo, voltará a ter autonomia.
Protótipo de veste robótica pode ser testado no Brasil
Com a tecnologia existente hoje, isso ainda não é possível. Mas Nicolelis é otimista. Ele acredita que, ao longo dos 880 dias que nos separam do início da competição, será possível desenvolver o protótipo da veste robótica para o toque inaugural da Copa.
O último passo de seu trabalho foi publicado em outubro passado na "Nature", uma das mais prestigiosas revistas científicas do mundo. Macacos conseguiram comandar os braços de um avatar apenas com a força da mente e usá-los para manipular objetos num mundo virtual.
Mas não só. Pela primeira vez, eles conseguiram receber de volta informações sobre a textura dos objetos, mostrando que uma veste robótica poderia, por exemplo, enviar ao cérebro informações sobre o terreno, algo indispensável para a locomoção.
A próxima etapa da pesquisa é refazer todas as experiências bem-sucedidas nos primatas em seres humanos. Ainda não há data prevista para o início desses testes, mas Nicolelis quer que ao menos parte deles seja realizada no Brasil.
- O cronograma científico está andando como o necessário - garante. - Estamos esperando a formalização do projeto com o governo brasileiro. Precisamos de logística, plano, estrutura para que a pesquisa possa ser feita no Brasil. A demonstração da Copa do Mundo será a ponta do iceberg para todo um trabalho de desenvolvimento de tecnologia, de capacitação profissional de cientistas, de criação de um parque tecnológico.
Megalomaníaco? Ou, como preferem seus desafetos, "miguelomaníaco"? Nicolelis sempre foi assim, desde a época da faculdade de Medicina, na USP: imaginando ideias que muitas pessoas considerariam grandiosas demais ou, simplesmente, malucas. Mas o fato é que, de uma forma ou de outra, ele pôs em prática boa parte delas.
Hoje, além da direção do Centro de Neuroengenharia de Duke, que comanda desde 1994, e do IINN, Nicolelis integra a Comissão do Futuro.
O órgão, criado no ano passado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, tem como objetivo apontar os entraves à ciência nacional.
Ele também foi laureado recentemente com dois importantes prêmios internacionais, o Pioneer Award e o Director's Transformative R01 Award, ambos concedidos pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA. E ainda sobrou tempo para escrever um livro de neurociências voltado para leigos, "Muito além do nosso eu" (Companhia das Letras).
- Um dos meus filhos diz que eu tenho uma maquininha de fazer tempo. Mas eu durmo muito pouco, de quatro a seis horas por noite - explica o neurocientista, que é divorciado e tem três filhos, de 18, 21 e 24 anos. - E são todas atividades prazerosas, fazer ciência, escrever livros, participar da comissão; então, sempre acho tempo.
Se conseguir fazer um paraplégico dar o pontapé inicial da Copa, o Brasil muda de patamar na ciência mundial, Nicolelis escreve de vez seu nome na História e credencia-se ainda mais ao cobiçado Nobel. Seria o primeiro do país.
- Ele é um visionário desde jovem - lembra Neiva Cristina Paraschiva, diretora-executiva da Associação Alberto Santos Dumont Para Apoio à Pesquisa, responsável pela captação de recursos e gestão do IINN.
Neiva, que conhece o cientista há 32 anos, conta que, na época da faculdade, ele era o diretor de esportes da Associação Atlética Acadêmica, enquanto ela era a técnica de basquete.
- A Atlética é um clube grande, numa área muito nobre de São Paulo, ao lado do Hospital das Clínicas, com quadras, pistas - conta Neiva.
- Naquela época, todo o espaço era ocupado pelos alunos somente na hora do almoço e no fim da tarde, para treinamentos esportivos.
Miguel achou que o espaço deveria ser usado também pela população local. Logo ele me chamou para abrir uma escola ali que atendesse às crianças da região. Essa escola de esportes está lá até hoje.
De certa forma, esta ideia foi o embrião do que seria, muitos anos depois, o IINN e o projeto social que o acompanha numa das regiões mais pobres do Nordeste. É que a megalomania de Miguel Nicolelis se estende também à área social.
- É um cara brilhante, que tem um trabalho de ponta, inovador, e que tem uma vontade de contribuir mais para o Brasil, como mostra essa instituição - avalia o neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ, vencedor do Faz Diferença este ano na categoria Ciência, por seu trabalho com células-tronco.
Além dos centros de pesquisa, o projeto potiguar conta ainda com três centros de educação científica, que atendem a 1.400 jovens de escolas públicas da região; e, ainda, com um centro de saúde, responsável por 12 mil atendimentos anuais para gestantes com gravidez de risco e crianças com problemas neurológicos.
A inauguração do Campus do Cérebro, uma área de 100 mil hectares a 20 quilômetros de Natal, prevista para junho, fará o projeto - científico e social - crescer ainda mais. Serão 30 laboratórios, um instituto de estudos avançados, um observatório astronômico, um centro esportivo e uma escola para 3 mil alunos.
- O grande diferencial desse projeto é a parte social - ressalta Neiva. - Miguel não conceberia fazer um centro de pesquisa de ponta sem o braço social. Ele acredita que, com a ciência, pode mudar a realidade local, reduzir a taxa de mortalidade infantil e ter jovens mais bem formados.
Um verdadeiro gol da ciência num país que tem a sexta economia do mundo, mas ocupa apenas a 84 a- posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

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