21 de dezembro de 2010

Complexo como o fim da escravidão

José Eli da Veiga

VALOR 21/12/2010

As evidências sobre o aquecimento global começaram a ser consolidadas em 1971
no primeiro evento internacional sobre o tema, em Estocolmo: "Study of man's
impact on climate". Vinte anos depois, a ONU montou o Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC). Decisão que saiu de um
grande conclave cujo título enfatizava "as implicações das mudanças
atmosféricas para a segurança global" (Toronto, 1988).

Quatro anos depois foram adotados no Rio os fundamentos do complexo processo
institucional posterior: a Convenção do Clima. Ainda outros cinco anos se
passaram até que fosse assinado o autista Protocolo de Kyoto, em 1997. Mais oito
para que ele pudesse entrar em vigor, em 2005, com a ratificação da Rússia.
Pior: as posteriores conferências das partes foram paupérrimas em decisões que
efetivamente contribuíssem para a descarbonização.

A rigor, há um único precedente histórico que ajuda a encarar com otimismo
tanta morosidade na busca de solução que encurte a agonia da era fóssil e
acelere a passagem à economia de baixo carbono: o processo que pôs fim à
escravidão. Se não houver guerra nuclear, cujas consequências são
absolutamente imprevisíveis, com certeza as emissões de gases de efeito estufa
serão minimizadas no século 21 em circunstâncias sociais e políticas comparáveis
às da emancipação dos escravos no século 19.

São duas feridas essencialmente éticas, cuja lentidão das cicatrizações se deve a
inércias culturais só superáveis por obra de oportunismos econômicos capazes de
engendrar rupturas políticas tão corajosas quanto traumáticas. Por isso, é
aconselhável aos que se empenham contra o aquecimento global que revisitem a
história dos movimentos sociais pela libertação dos escravos, dando particular
atenção às razões de suas derrotas e sucessos parciais durante o meio século que
precedeu as abolições, só desencadeadas em 1833 pelo império britânico.

Os lucros das plantações das Índias estavam no coração da economia como
hoje estão os do petróleo e do carvão

Os pioneiros do abolicionismo, principalmente "quakers" ingleses, sabiam que a
tarefa que tinham se proposto parecia impossível. Praticamente todos os
britânicos, de peões a bispos, aceitavam a escravidão como algo inteiramente
normal. Afinal, viviam num país em que os lucros das plantações das Índias
Ocidentais estavam no coração do sistema econômico, como ocorre hoje com os
lucros do petróleo e do carvão. As taxas alfandegárias sobre o açúcar cultivado
pelos escravos constituíam imensa fonte de renda para o governo e a vida de
centenas de milhares de marinheiros, mercadores e construtores de navios
dependia do tráfico de escravos. Comércio cuja expansão na segunda metade do
século 18 tornara prósperos diversos portos britânicos, inclusive o de Londres.

Em tais circunstâncias, como levar a opinião pública a pressionar o parlamento,
se nem tinham direito a voto todas as mulheres e 95% dos homens? Manchester já
era a segunda maior cidade do país, mas não tinha sequer um representante na
Câmara dos Comuns, enquanto uma quase desabitada colina (Old Sarum) contava
com dois. Enfim, chega a ser inacreditável que os abolicionistas tenham
conseguido a proibição do tráfico apenas 20 anos depois de sua primeira reunião.
E com mais 30 anos o fim da própria escravidão.

Foi decisiva nesse processo a contribuição de James Stephen, um dos principais
advogados marítimos do império. Sua experiência no mundo do comércio
internacional lhe deu a ferramenta crucial para a luta em favor da abolição. Sua
grande aversão ao escravismo foi cuidadosamente mantida em segredo, e seus
argumentos eram práticos e impecavelmente patrióticos. Atraiu, de forma sub-
reptícia, o apoio de um poderosíssimo lobby com o projeto de que também os
navios com bandeiras neutras se tornassem atacáveis. Sob o sistema de
"recompensa", tanto militares da marinha como tripulações de navios particulares
tinham o direito de compartilhar o valor dos navios e das cargas que
capturassem. Essa era a maneira com que os oficiais sonhavam ficar ricos e seus
marinheiros imaginavam poder complementar seus magros vencimentos. Com
grande habilidade, Stephen evitava se referir à natureza da carga que quase
todos esses navios carregavam: escravos.

Muitos outros episódios desse tipo estão minuciosamente descritos no
empolgante livro do jornalista Adam Hochschild: "Enterrem as correntes; profetas
e rebeldes na luta pela libertação dos escravos (Record, 2007). Todos reforçam a
hipótese de que o processo de transição ao baixo carbono só receberá um
decisivo empurrão quando deputados e senadores do congresso dos Estados
Unidos forem convencidos por argumentos práticos e patrióticos a mudar
radicalmente a atual estratégia de segurança energética baseada no petróleo e
no carvão, mesmo que a peça legislativa nem mencione a ruptura climática.
Seria o término da já longa agonia da era fóssil, mesmo que ainda fossem

necessários alguns anos para que ela se tornasse global. Sem um fato dessa
natureza, nada de realmente importante poderá resultar das negociações
multilaterais.

José Eli da Veiga é professor titular da USP (FEA e IRI) e autor de "Sustentabilidade"
(Ed. Senac, 2010), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br

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