14 de janeiro de 2012

A ação do governo na cracolândia é adequada? Pedro Abramovay


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Pedro Abramovay


NÃO

Nada a ver com as UPPs

A Polícia Militar ocupou a cracolândia. Ocupou? Por que o uso desse termo militar? Há dois possíveis motivos para isso.

Políticos raramente fogem à tentação de utilizar metáforas bélicas quando estão se referindo às drogas. Sempre pode sobrar algum dividendo político de se dizer parte de uma "guerra às drogas".

Vários líderes mundiais se reuniram recentemente para apontar que a lógica de guerra fracassou. É hora de produzir políticas mais inteligentes, que causem menos danos à sociedade. Infelizmente, muitos insistem em não perceber isso.

O segundo motivo, que me parece o principal neste caso, é uma tentativa de aproveitar o impacto positivo das ocupações em favelas cariocas e tentar colar nessa imagem.

Mas é preciso perceber que a lógica por trás das UPPs é diametralmente oposta à lógica da ocupação da cracolândia. Os problemas são radicalmente diferentes e merecem soluções distintas.

As UPPs vêm para enfrentar um problema de segurança pública: uma ocupação militarizada dos morros cariocas por organizações criminosas. Essa ocupação produzia violência e atingia frontalmente a liberdade dos moradores. O êxito dessa iniciativa veio quando o secretário de Segurança disse claramente que aquela não era uma operação para erradicar as drogas. O objetivo era diminuir a violência e recuperar o espaço das favelas para a cidade.

Esse foco preciso produziu uma política que tem combinado ações policiais com ações sociais. Com os percalços naturais de uma política pública tão complexa, ela está atingido o seu objetivo.

Mas, no caso da cracolândia, em São Paulo, o problema não é de segurança pública.

É um problema de saúde pública, agravado pela profunda exclusão social dos usuários de crack. Utilizar a polícia para tratar uma questão que não é de segurança pública tem poucas chances de sucesso. Em todas as experiências internacionais bem-sucedidas de promoção da saúde para usuários de drogas, o afastamento da polícia permitiu uma abordagem mais profunda por parte de profissionais da saúde e de assistência social.

O exemplo mais proeminente foi o de Portugal. Dez anos após a descriminalização do porte de pequenas quantidades, o país conseguiu, sem aumentar o consumo, aumentar de forma expressiva o acesso à saúde dos usuários.

No caso da cracolândia, é evidente que a presença da polícia reduz as chances de uma política de acesso à saúde.

Mesmo a ideia inicialmente apresentada, de que a polícia pode acabar com o tráfico na região, foi já desmentida pelo comandante da Polícia Militar na região central. Ele afirmou ser "utopia" dizer que é possível atingir tal feito.

Até porque essa separação tão clara entre o traficante e o usuário não é real. Uma parte significativa dos usuários de crack, em algum momento, já venderam a droga para sustentar o seu vício. Mas, mesmo nesses casos, a abordagem policial não resolve o problema. Apenas esconde.

A solução para a cracolândia não passa por viaturas e revólveres. Ela passa por consultórios móveis, com profissionais bem capacitados para dar atendimento aos usuários. Passa também por uma política consistente de assistência social para os moradores de rua.

Querer exportar o modelo carioca para a cracolândia é usar uma estratégia de segurança pública para lidar com um problema de saúde. É tão eficiente quanto utilizar metralhadoras para acabar com mosquitos da dengue.

PEDRO ABRAMOVAY, 31, é professor da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro e coordenador do site www.bancodeinjusticas.org.br; foi secretário nacional de Justiça (2010)



SIM 


Política higienista? Não, dever constitucional 

Quando o governo procrastina, o resultado é quase sempre desastroso. O descalabro da cracolândia é um desses casos.

Há 15 anos, algumas ruas do centro velho de São Paulo foram tomadas por uma nova droga, o crack. Durante o dia, os usuários desapareciam. Escondiam-se em canteiros de avenidas, em hotéis baratos e em organizações não governamentais (na maioria dos casos, religiosas).

À noite, quando as lojas se fechavam, como no clipe "Thriller", de Michael Jackson, maltrapilhos e moribundos "surgiam". Hordas de "batmans", enrolados em cobertores, atacavam transeuntes e moradores para poder levar algo que permitisse comprar pedras de crack.

Autoridades? Sim, a Polícia Militar fazia rondas. Às vezes, fazia abordagens ou um estardalhaço com algumas dezenas de homens.

A inovação da cracolândia, na alameda Dino Bueno e na rua Helvétia, foi o aperfeiçoamento da desgraça. A três quadras de um batalhão da polícia, viciados e traficantes encontraram o ambiente perfeito para passarem o dia todo.

Em pouco tempo, uma linha de ônibus teve o seu trajeto alterado, e o lugar foi abandonado, tornando-se um ponto de tráfico e uso de crack. Estima-se que 2.000 pessoas tornaram aquela latrina a céu aberto o centro dos seus universos. Imagens de televisão não transmitem a fedentina repugnante.

Durante anos, desleixadamente (e criminosamente, por que não dizer?), nossos governantes permitiram que a pedra fosse negociada livremente. Durante os anos 1990, a "inteligência policial" ignorou denúncias, não fez quase nada. Muita vezes, foi conivente e corrupta.

Hoje, apesar de carente em inteligência e em investigação -esta nova retomada se fez com poucas prisões e nenhum mandado de busca-, a ação da polícia é a esperança de uma nova postura do Estado.
Culpam a ação policial por prejudicar o trabalho das ONGs e dos agentes de saúde. Eles estariam criando vínculos com possíveis adeptos do tratamento. É discutível.

Os agentes de saúde são estagiários e estudantes de diversos cursos universitários, contratados não pela Prefeitura, mas por ONGs terceirizadas. Em geral, são pessoas sem vocação, preparo ou experiência. Vestidos com coletes azuis e com pranchetinhas nas mãos, andam burocraticamente pelas ruas vendendo a mentira de que estão criando vínculos com os dependentes.

Quais vínculos são esses? Eles esperam substituir os pais, os irmãos e os amigos, há muito perdidos pelos "nóias"? Vão acompanhá-los durante todo o tratamento? E depois do tratamento, serão seus melhores amigos? Não. Sobre esses vínculos, muito pouco pode se esperar.
E agora? Vamos reprovar a ação da polícia? Não! A cracolândia é um misto de problemas. E um deles é de segurança pública.
Óbvio que excessos cometidos por autoridades não devem ser tolerados. Mas isso não tira a obrigação do Estado de estar lá, recuperando a região do domínio do crack e reinstaurando a ordem. O que a Polícia Militar está fazendo agora é apenas o que deveria ter feito há 15 anos -se tivesse feito, hoje não haveria cracolândia com endereço fixo. A operação deve continuar. Política higienista? Não. Dever constitucional.
Óbvio que a polícia não resolverá a dependência química, mas poderá propiciar um ambiente seguro para que as outras formas de ajuda possam chegar a quem necessita. A polícia abre caminho para que os usuários tenham o acesso à saúde, às igrejas, às ONGs e aos familiares.

A internação compulsória também deve ser exercida. Durante um resgate, os paramédicos não perguntam se o acidentado aceita ser encaminhado ao hospital. O dependente precisa dessa ajuda. Talvez ele saia da internação e imediatamente volte para o crack, mas ele tem o direito de passar alguns dias limpo para que retome seu poder de decisão.

PAULO CAPPELLETTI, 51, teólogo, é diretor da Missão SAL (Salvação, Amor e Libertação). Atua no tratamento de dependentes há 15 anos. JULIANO MELO, 33, bacharel em letras, e MARTINIANO BORGES, 30, sociólogo, são diretores do IBTE - Instituto Brasileiro de Transformação pela Educação.

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