6 de maio de 2012

A morte pede passagem: o drama das motos


Estudo inédito sobre a violência no trânsito aponta o Brasil como o segundo país do mundo em número de vítimas fatais de acidentes de moto. Como resolver essa tragédia?

Adriana Dias Lopes, Veja, 6 de maio, 2012

São Paulo, madrugada de sábado para domingo, 15 de abril. A festa de aniversário do filho de 10 anos acabara fazia pouco tempo quando Alexandro Luiz Neves decidiu ir ao encontro de um amigo perto dali. De motocicleta, seu meio de transporte e instrumento de trabalho. levaria pouco mais de cinco minutos. Neves saiu de casa prometendo voltar logo. Não voltou. No meio do caminho, foi atropelado por um carro que havia cruzado o sinal vermelho. Neves foi arremessado a 5 metros de distância. Aos 33 anos, morreu no asfalto, vítima de traumatismo craniano e hemorragia interna.
A morte de Neves ilustra, tristemente. uma das grandes tragédias de nosso tempo. O Brasil é o segundo país do mundo em vítimas fatais em acidentes de moto. São 7,1 óbitos a cada 100000 habitantes. Só no Paraguai se morre mais. Nos últimos quinze anos. a taxa de mortalidade sobre duas rodas aumentou inacreditáveis 846,5%. A de carros, 58,7%. "Nunca se viu no Brasil um salto tão grande no número de mortes no trânsito com um único tipo de veículo", diz o sociólogo Julio Jocobo Waiselfisz. coordenador do Mapa da Violência 2012, minucioso levantamento feito pelo Instituto Sangari, obtido com exclusividade por VEJA. O estudo, realizado a partir da avaliação de I milhão de certidões de óbito, traz o maior e o mais completo retrato sobre os acidentes de trânsito no país. Até o fim do ano, 13 00() brasileiros morrerão nas ruas e avenidas. A violência é tanta que 40% deles sucumbirão ali mesmo, no local do acidente. como Neves, que acabara de cantar Parabéns a Você para o filho. Engana-se quem associa as motocicietas aos motobovs de São Paulo. sempre ávidos por um espaço inexistente. a uma velocidade inadequada e perigosa. A maioria dos brasileiros que andam sobre duas rodas (40% do total) o faz para substituir o transporte público, e apenas 16% como instrumento de trabalho.
Desde o início dos anos 2000, com o financiamento bancário facilitado, o Brasil testemunha um crescimento impressionante no número de motos. São 18.5 milhões em circulação - metade do total de carros. Daqui a quatro anos, segundo estimativas dos especialistas, a quantidade de motos rodando deve ultrapassar a de carros. Na Região Norte, esse desenho já é uma realidade. conforme mostrou o Sistema de Indicadores de Percepção Social. com base em informações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Nos estados do Norte, as motos representam 64% do total de veículos motorizados. O Brasil não dispõe de políticas rigorosas que regulamentem o comportamento do motoqueiro". diz a médica Julia Greve. tisiatra do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas (HC). em São Paulo, centro de referência no tratamento de acidentados de trânsito. A única lei de segurança sobre o assunto é a que obriga o uso de capacete (veja, ao longo desta reportagem, o depoimento de pessoas que conhecem de perto o perigo das ruas sobre duas rodas).
Há duas semanas. o HC, em parceria com federações da indústria, de sindicatos de condutores e da Companhia de Engenharia de Tráfego paulistana, realizou um fórum com propostas para reduzir os acidentes e as mortes. Um dos pontos mais polêmicos refere-se ao local de circulação da moto. Nas metrópoles. e prioritariamente em São Paulo. os motoqueiros costumam trafegar no chamado "corredor da morte". entre os carros. Nessa apertada faixa. desafia-se constantemente a lei de Isaac Newton segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Em alta velocidade, o menor dos estragos é o festival de espelhos retrovisores destruídos. Há, evidentemente. os cuidadosos. e convém não tomar o todo pela parte - mas a maioria voa. Aliás, definir a velocidade máxima para as motos foi um dos pontos discutidos no fórum do HC. O Brasil é um dos poucos países a permitir a circulação de motociclistas entre os carros e. pior ainda, a deixar que a velocidade de ambos seja a mesma. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde os motoqueiros só podem trafegar atrás dos carros, os índices de morte equivalem a um quarto dos óbitos registrados nas ruas brasileiras. Diz o ex-motoboy Cleydener de Almeida Lacerda, de 33 anos: "Não dá para não correr, já que todo mundo corre". Por causa dos perigos da profissão, há quatro anos ele decidiu trocar o asfalto pela segurança de uma oficina mecânica.
A moto sempre deixa seu condutor em situação de extrema vulnerabilidade. "O motoqueiro está inevitavelmente exposto a graves riscos, independentemente do contexto urbano". diz o cirurgião Jorge dos Santos Silva, chefe do trauma do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas. Em uma colisão a 50 quilômetros por hora. o impacto sobre o corpo do condutor (não importa se o do carro ou o da moto) será equivalente ao de uma queda livre de 10 metros de altura. Se o choque ocorrer no dobro da velocidade, é como se ele despencasse de 40 metros. "O motociclista está com o corpo livre e o condutor do automóvel, de cinto de segurança, protegido pela funitaria", diz Octacílio Martins Júnior. cirurgião do serviço de cirurgia de emergência do Instituto Central do HC, de São Paulo. A maioria das lesões nos acidentes com motociclistas ocorre nas estruturas do corpo mais expostas, em especial os membros inferiores. Nesses casos, em geral, o dano não se limita a uma única estrutura. "O impacto pode lacerar a pele, músculos, tendões, nervos e ossos - tudo ao mesmo tempo", explica o cirurgião Marcelo Rosa de Rezende, também do Instituto de Ortopedia do HC. O tratamento costuma ser complexo, levando muitas vezes à realização de transplantes autólogos (quando o enxerto é extraído do próprio organismo do paciente). Em cerca de 5% dos acidentes desse tipo, a única saída é a amputação.
É tão comum ver a morte pedir passagem que situações cotidianas assustadoras, mas não tão graves, são quase comemoradas. O mal menor faz sorrir. No dia 12 de março. a reportagem de VEJA passou dez horas no Pronto Socorro do HC paulistano. Eram quase 10 horas da manhã quando chegou uma ambulância do Corpo de Bombeiros trazendo um motoqueiro. Ele estava desacordado e sem o movimento em uma das pernas. Pouco tempo antes, havia sido fechado por um carro enquanto trafegava em alta velocidade. Ao longo de vinte minutos. quatro médicos realizaram concomitantemente os exames clínicos e de anamnese necessários para descartar a possibilidade de lesões cardíacas ou cerebrais. O paciente foi diagnosticado com uma perna quebrada. A 1 hora da tarde, recebeu alta. Foi um acidente simples perto das tragédias que invadem as ruas brasileiras. Uma perna quebrada, no entanto. que poderia ter sido evitada caso o Brasil estivesse de fato preparado para ser o país das motocicletas.
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Quando o prazer supera a lembrança da dor
"Há cinco anos, sofri um acidente de moto numa curva fechada. Estava sozinho, não fui fechado, mas andava a 60 quilômetros por hora, velocidade alta demais. A moto caiu em cima da minha perna esquerda. Perdi metade deia. Sofri muito, claro, mas o sofrimento não foi suficiente para que minha paixão por motos esfriasse. Hoje, por algumas vezes, ainda me arrisco a dar uma voltinha pelo quarteirão. Amarro o pé da prótese na embreagem. O prazer de andar de moto é maior do que a dor da lembrança do acidente."Gesiel Gaudino da Silva, 25 anos
Na cidade, nunca mais
"Sou alucinado por motos desde criança. Aos 12 anos, tive uma mobilete. Depois disso, troquei de moto diversas vezes. Já sofri dois acidentes feios. No primeiro, em 2002, quebrei a perna esquerda. Fiquei seis meses sem andar. No segundo, em novembro passado, a moto caiu em cima do meu pé direito.Tenho dois pinos no tornozelo. Nos dois acidentes, fui atropelado por carros. Hoje, só ando na estrada. Na cidade, nunca mais." Erwin Cosmo Jakobowski, 34 anos
Longe da loucura
"Fui motoboy durante treze anos. Há quatro não sou mais. Cheguei a trabalhar dezesseis horas por dia, dividia o tempo entre um escritório e uma pizzaria. Gostava do que fazia, e valia a pena financeiramente. Comprei minha casa, tinha uma vida estável. Mas o que tenho visto na rua nos últimos anos me fez abandonar a profissão.Testemunhava três acidentes por dia com motoboys, na maioria fatais. Hoje ganho menos, mas estou longe dessa loucura absurda e perigosa."
Cleydener de Almeida Lacenia, 33 anos
Calvário interminável
"Em 2010, fui fechado em um cruzamento por um ônibus escolar e caí da moto. Saí andando, mas, ao tentar tirar o capacete, percebi que havia algo de errado. Não conseguia mexer o braço direito. Na batida, sofri lesões irreversíveis nos nervos do braço e da mão. Desde então, comecei uma batalha sem fim. De lá para cá, tenho vivido um calvário: fui submetido a duas cirurgias e, três vezes por semana, faço sessões de fisioterapia. Hoje, já consigo mexer um pouco quatro dedos da mão e erguer o braço um pouco."
Samuel William Cau, 21 anos
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VIOLÊNCIA SOBRE DUAS RODAS
Os acidentes e as mortes envolvendo motos no Brasil são resultado direto do crescimento acelerado da frota
PERFIL DO MOTOCICLISTA
Faixa etária
40% têm de 21 a 35 anos
20% têm mais de 40 anos
25% têm de 36 a 39 anos
7% têm até 20 anos
Sexo
75% homens
25% mulheres
Razões da compra
40% para substituir o transporte público
19% para o lazer
16% para usar como instrumento de trabalho
10% para substituir o carro
15% por outros motivos
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Um acidente nada pequeno
"Sempre fui fascinada pela sensação de liberdade de uma moto. Em 2010, um carro bateu na lateral direita da minha moto e eu cai. A queda não foi séria - eu dirigia devagar. Mas a placa do carro rasgou meu pé até o tornozelo. 0 ferimento infeccionou gravemente e acabei perdendo não só o pé, mas toda a perna esquerda.
Lucione Ramos, 36 anos. com as filhas
Nicole, de 9, e Natália, de 16
PARA MELHORAR
As principais propostas criadas no
Fórum de Acidente de Motocicleta, evento coordenado pelo Instituto de Ortopedia, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, em abril deste ano
1 - Estabelecer cursos de habilitação rigorosos, com formação e avaliação ambientadas às condições do trânsito. Hoje, as aulas contemplam testes em locais distantes do trânsito, cuja exigência se limita a acelerar e frear a moto, fazer uma curva e estacionar
2 - Criar um sistema de avaliação periódica das condições das motocicletas. Hoje não há essa exigência
3 - Definir por onde a moto deve trafegar. Hoje ela pode circular na mesma pista dos carros ou no meio deles
4 - Criar uma regulamentação mais rigorosa para a atividade dos motoboys, com treinamento específico e definição do vestuário. Hoje as empresas não são obrigadas a oferecer orientações próprias para esse tipo de condutor
5 - Estabelecer a notificação compulsória dos atendimentos de vítimas de acidentes de trânsito. Hoje isso não é obrigatório
6 - Implementar cursos regulares na formação de crianças, para que elas tenham noções de um trânsito seguro com o uso da motocicleta como meio de transporte. Hoje algumas escolas oferecem esse tipo de atividade aos alunos, mas somente em relação ao trânsito com carros
7 - Definir um limite de velocidade específico para a moto. Hoje esse limite é igual ao do automóvel

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Um comentário:

  1. Vejam bem, vemos com frequência no trânsito de qualquer cidade brasileira, seja ela grande ou pequena, um abuso irracional por parte dos motociclistas.

    Os caras, cometem zigue-zague no meio dos carros, como se eles estivesse protegidos por uma armadura de aço super resistente.

    São normalmente apressados, além dos motoristas de carros e se alguém reclama, eles se acham no direito de brigar por seus direitos(qual ?).

    Não se pode achar que tais pessoas, desequilibradas emocionalmente, são motociclistas.

    Piloto motos a 30 anos, já sofri alguns acidente e isso de forma bem educativa, me ensinou a respeitar os carros como a irmãos mais velhos, que poderiam tirar de mim o direito de brincar com minha moto.

    Olho para o trânsito como um lugar que devo respeito, para que meu direito de transitar por ele, não seja tirado.

    Enfim, aprendi que para continuar a usar minha moto e tirar o máximo de proveito dela, tenho que respeitar minha vida antes de tudo.

    Leis, se os infratores não forem responsabilizados penalmente por seus atos, sinto dizer, não vai funcionar.

    Novas normas de aprendizado devem ser aplicadas com urgência, a começar pelos instrutores das escolas, os caras não sabem nem pra eles, salvo alguns poucos.

    Se os instrutores forem provados num teste de conhecimento geral de trânsito e bom senso, creio que a maioria vai ser reprovada, se os testes forem também psicológicos, ai a coisa piora.

    Dizia meu pai, "educação se aprende em casa".

    Quero dizer com isso que, se as escolas não forem melhores, não vai resolver a questão.

    Ha Cabral, por que você trouxe aquelas pessoa pra cá ?

    Ary

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