CRÍTICA
E o 18 Brumário de Alexis de Tocqueville
O subtítulo não é descabido, porém, se estiver implícito que o biografado foi o profeta dos males e dos riscos da democracia, de suas propensões a degenerar em novas formas de despotismo. Essa ideia fixa norteou tanto sua obra de historiador e teórico político, como sua discreta atuação como parlamentar liberal nos anos que antecederam e se seguiram à Revolução de 1848 na França. É atribuída em grande parte a razões biográficas.
Tocqueville foi um magistrado oriundo de família nobre e bem relacionada no Antigo Regime, anterior à Revolução de 1789. Quem sustentou a defesa de Luís 16 perante a Convenção que o enviaria à guilhotina foi seu bisavô, ele próprio guilhotinado em seguida. Também preso, o pai do filósofo escapou do mesmo destino quando, na penúltima hora, a queda de Robespierre (1794) encerrou o período de terror revolucionário. De um ângulo psicológico, sua obra refletiria o empenho de exorcizar o trauma da Revolução.
Pois a Revolução prosseguia. Depois do refluxo representado pelo Império de Napoleão (1804-14) e pela Restauração da dinastia Bourbon (1815-30), novas revoltas, em 1830 e 1848, começavam a apresentar uma feição inédita, operária e socialista. Não bastava a igualdade jurídica, reivindicava-se igualdade material.
Era a época da máquina a vapor, das estradas de ferro e do telégrafo, das cartolas que imitavam chaminés de fábricas e navios. Em meio ao tumulto urbano do qual eclodiria a modernidade, não se pode dizer que Tocqueville tenha levado uma vida empolgante.
Sente-se a dificuldade do biógrafo, o jornalista e historiador britânico Hugh Brogan, de sustentar o interesse nas quase 700 páginas de *"Alexis de Tocqueville" [trad. Mauro Pinheiro, Record, R$ 69,90]* em que narra uma existência livresca e enfermiça, na maior parte do tempo enclausurada num gabinete ou no castelo da família na Normandia.
MINISTRO Tímido e circunspecto, Tocqueville foi levado à vida pública pela influência familiar e pela fama de seus livros num tempo em que as elites parlamentar, literária e financeira em boa parte se sobrepunham (os poetas Lamartine e Victor Hugo, por exemplo, foram deputados). A política o expeliu depressa. Foi um efêmero ministro de Luís Bonaparte, antes que o sobrinho do imperador, eleito presidente em 1848, desse o golpe de Estado (1851) que o converteria em Napoleão 3º.
Daí o gosto com que este biógrafo exaustivo aborda os dois episódios mais movimentados de uma vida um tanto maçante, a aventurosa viagem aos Estados Unidos, (de que resultou sua obra mais conhecida, "A Democracia na América", 1835-40) e a soturna perambulação por Paris durante os levantes populares ferozmente reprimidos pelo governo republicano, assunto de um livro inacabado, "Lembranças de 1848" [trad. Modesto Florenzano, Penguin Companhia, 392 págs., R$ 28,50].
Tocqueville foi um historiador erudito, um teórico imaginativo e um escritor elegante, mas sua qualidade mais notável é a aptidão para generalizar a partir da observação concreta.
Entre abril de 1831 e fevereiro de 1832, o jovem autor passou nove meses nos Estados Unidos; foi paparicado nos salões de Nova York e Boston, naufragou no rio Ohio, desceu o Mississippi, avistou-se com o então presidente, Andrew Jackson, mas não conheceu James Madison na Virgínia -a maior lástima intelectual, diz o biógrafo, da excursão.
Sob a alegação de estudar o sistema penitenciário local -o governo constitucional e corrupto do "rei burguês", Luís Filipe (1830-48), financiava a viagem- ele concebeu uma interpretação pioneira e até hoje fecunda sobre a sociedade e a democracia americanas.
Uma terra virgem onde todos são imigrantes é propícia ao nivelamento de direitos, mas a democracia americana não existiria sem as raízes da participação comunitária e das limitações ao poder do rei, legados essenciais do colonizador inglês que remontavam à Idade Média. Sob o alvoroço das revoluções e contrarrevoluções, Tocqueville -sempre interessado na moldura geral e nos fatores de longo alcance- identifica veios profundos de continuidade que apontam numa mesma direção: centralização do Estado e igualdade (política e, em seguida, social).
Herói de guerra, Jackson, o presidente que Tocqueville conheceu, foi um general estranho à elite dirigente da costa atlântica que se elegeu à frente de um movimento de massas (origem do Partido Democrata). Nessa atmosfera, não custou ao escritor teorizar que o grande risco do sistema americano estaria no advento de uma ditadura da maioria, sua obsessão. O mecanismo de freios e contrapesos ("checks and balances", pelo qual os três poderes se controlam, e as instâncias locais controlam a nacional) talvez não fosse suficiente para preveni-lo.
Ele falava dos Estados Unidos (e, indiretamente, da Inglaterra), mas seu pensamento não deixava a França, onde a "tragédia" (Napoleão) estava por ser reencenada como "farsa" (Napoleão 3º), conforme o famoso gracejo de Marx. Para Tocqueville, igualdade e democracia eram vetores irrecorríveis, consequência do próprio progresso moderno, mas o governo da maioria descambava para novo despotismo, legitimado por sua própria natureza majoritária, sendo exercido primeiro por uma facção, logo depois por um tirano. Por quê?
O nexo estava numa ideia do filósofo Montesquieu desenvolvida por Tocqueville, sobretudo em sua outra obra influente, "O Antigo Regime e a Revolução", publicada em 1856, três anos antes de a tuberculose matar seu autor.
Montesquieu argumentara que na monarquia (distinta, para ele, do despotismo), o poder do rei, embora imenso, era contrastado por regulamentos e costumes, pelas autonomias concedidas a certas cidades, corporações e tribunais, para não mencionar a estrutura paralela da Igreja. Esses elementos de contenção seriam os "corpos intermediários", fonte de inspiração de sua doutrina da separação de poderes.
DESPOTISMO A contribuição de Tocqueville foi sustentar que a centralização administrativa, já em curso no Antigo Regime, debilitara os "corpos intermediários", preparando o terreno para a Grande Revolução (da qual 1789, 1830, 1848 etc. são apenas episódios) que os erradica em nome da igualdade. O resultado é a facilidade com que um déspota passa a dominar a multidão de indivíduos igualados numa dispersão de átomos, sem vínculo entre si nem anteparo que os resguarde do Estado.
Tocqueville não deixou uma análise sobre o bonapartismo; esse seria o tema da sequência de "O Antigo Regime e a Revolução", nunca escrita. Ainda assim, é instrutivo comparar sua visão com a de Karl Marx, que elaborou o conceito no ensaio "O 18 Brumário de Luís Bonaparte". Para o filósofo socialista alemão, política e história não passam de um teatro de marionetes comandado pelas relações econômicas de produção.
Mesmo quando se torna esquemática demais, essa concepção é fabulosa pelo que pode revelar do funcionamento invisível da sociedade. Comparada a ela, as ideias de Tocqueville parecem superficiais e obsoletas; comparado ao estilo de Marx, com suas imprecações de profeta e sua vitalidade panfletária, o de Tocqueville empalidece.
No cânone marxista, em certa fase histórica o movimento proletário ainda não tem força para depor a burguesia, nem esta consegue aniquilar aquele; desse precário impasse emerge de repente o poder de um ditador, referendado por plebiscito, que parece governar acima de todas as classes. Aparência enganosa, porém, pois o bonapartismo seria, em última análise, a forma extrema do domínio político burguês, quando acuado pela revolução social.
O bonapartismo se desdobraria no século 20 nas vertentes fascista e comunista -ambos movimentos de massa conduzidos pelo chefe inconteste de uma facção disciplinada, para a qual a violência política é legítima quando empregada em nome de uma raça ou de uma classe eleita.
A encarnação do bonapartismo na figura de Stalin e outros ditadores comunistas conferiu uma aura tocquevilliana ao sinistro fenômeno, que a humanidade ainda não superou completamente, como se ele correspondesse não apenas a um momento agudo da luta de classes, mas a todo um período embrionário da democracia moderna. É o que faz de Tocqueville um autor ainda tão atual.
Tocqueville foi levado à vida pública pela influência familiar e pela fama de seus livros num tempo em que as elites parlamentar, literária e financeira se sobrepunham
Tocqueville foi um historiador erudito, um teórico imaginativo e um escritor elegante, mas sua qualidade mais notável é a aptidão para generalizar a partir da observação concreta
A contribuição de Tocqueville foi sustentar que a centralização administrativa debilitara os "corpos intermediários", preparando o terreno para a Grande Revolução
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