Em meio a um farto noticiário sobre guerras e crimes, parece que o mundo está à beira de um colapso moral, mas em nenhuma outra época o número de mortes violentas foi tão baixo
05 de maio de 2012
É PROFESSOR DE BIOÉTICA NA UNIVERSIDADE DE PRINCETON, PETER, SINGER, PROJECT SYNDICATE, É PROFESSOR DE BIOÉTICA NA UNIVERSIDADE DE PRINCETON, PETER, SINGER, PROJECT SYNDICATE - O Estado de S.Paulo
Com manchetes diárias na imprensa colocando em evidência a guerra, o terrorismo, os abusos de governos repressivos, e líderes religiosos lamentando com frequência a deterioração dos padrões de comportamento público e privado, a primeira impressão que temos é de que estamos presenciando um colapso moral. Mas acho que há razões para sermos otimistas quanto ao futuro.
Há 30 anos, escrevi um livro chamado The Expanding Circle (O círculo expandido, numa tradução livre), onde afirmei que, historicamente, o círculo de seres aos quais estendemos a consideração moral foi ampliado, primeiro da tribo para a nação, depois para a raça ou grupo étnico e então para todos os seres humanos, para finalmente se estender para os animais não humanos. Esse, certamente, é um progresso moral.
Poderíamos achar que a evolução levaria à seleção de indivíduos que pensam apenas nos seus próprios interesses e daqueles mais próximos, porque os genes com tais características têm mais probabilidade de se propagar. Mas, como afirmei, o desenvolvimento da razão pode nos levar para uma direção diferente.
De um lado, a capacidade de raciocínio confere ao ser humano uma vantagem evolucionária óbvia porque ela permite resolver problemas e planejar de modo a evitar os perigos, com isso aumentando as perspectivas de sobrevivência. Por outro lado, a razão é mais do que um instrumento neutro de solução de problemas. Ela se assemelha a uma escada rolante: uma vez nela, podemos ser levados a lugares que jamais esperamos chegar. A razão, em particular, nos permite ver que outros, que antes estavam fora dos limites da nossa visão moral, são iguais a nós sob muitos aspectos importantes. Exclui-los da esfera de seres para os quais temos uma obrigação moral pode então parecer arbitrário ou simplesmente errado.
O recente livro de Steven Pinker, The Better Angels of our Nature corrobora vigorosamente essa visão. Pinker, professor de psicologia da Universidade Harvard, recorre a pesquisas recentes nas áreas da história, psicologia, ciência cognitiva, economia e sociologia para afirmar que nossa era é menos violenta, menos cruel e mais pacífica do que qualquer período anterior da existência humana.
O declínio da violência se verifica nas famílias, vizinhanças, tribos e Estados. Em essência, os humanos hoje têm menos probabilidade de ter uma morte violenta ou sofrer violência ou crueldade nas mãos de outros do que seus predecessores em qualquer século anterior.
Muitas pessoas poderão duvidar dessa afirmação. Algumas têm uma opinião mais auspiciosa da vida mais simples, supostamente mais plácida, dos homens primitivos das tribos em comparação com a sua própria. Mas exames de esqueletos encontrados em sítios arqueológicos sugerem que cerca de 15% dos seres humanos pré-históricos tiveram uma morte violenta nas mãos de outra pessoa. A título de comparação, na primeira metade do século 20, as duas guerras mundiais causaram mortes na Europa a uma taxa que não superou os 3%.
Mesmo aqueles seres tribais exaltados pelos antropólogos como especialmente "mansos", por exemplo os semai da Malásia, os kung de Kalahari e os inuits do Ártico Central - registram um índice de assassinatos que, em termos de população, se compara ao de Detroit, que contabiliza o maior número de assassinatos nos EUA. Na Europa, a chance de uma pessoa ser assassinada hoje é 10 vezes menor e em alguns países 50 vezes menor do que se ela vivesse há 500 anos.
Pinker admite que a razão é um fator importante subjacente às tendências que descreve. Para apoiar sua afirmação, ele faz referência ao "Efeito Flynn" - a formidável descoberta do filósofo James Flynn de que, desde que os testes de QI passaram a ser administrados, as notas subiram consideravelmente. Por definição, o QI médio é 100. Mas para atingir tal resultado, os resultados brutos de testes precisam ser padronizados. Se um adolescente hoje realizasse um teste de QI em 1910, ele ou ela alcançaria a nota 130, que seria melhor do que os 98% dos que realizaram o teste naquela ocasião.
Não é fácil atribuir esse progresso ao aprimoramento da educação, porque os elementos dos testes com base nos quais as notas aumentaram mais não exigem um bom vocabulário, nem mesmo o domínio da matemática, mas avaliam a capacidade de raciocínio abstrato.
Segundo uma teoria, estamos tendo um melhor desempenho nos testes de QI porque vivemos num ambiente mais rico de símbolos. O próprio Flynn acha que a difusão do modo de raciocínio científico tem um papel nisso.
Pinker afirma que uma maior capacidade de raciocínio nos permite desvincular da nossa experiência imediata e da nossa perspectiva pessoal ou convencional para formular nossas ideias em termos mais universais e abstratos. O que, por seu lado, resulta num maior compromisso moral, incluindo o de evitar a violência. Foi exatamente essa capacidade de raciocínio que se aperfeiçoou durante o século 20.
Assim, existem razões para acreditar que nossa capacidade de raciocínio mais desenvolvida nos permitiu aplacar a influência daqueles elementos mais impulsivos do nosso caráter que conduzem à violência.
Talvez isso corrobore a significativa queda de mortes infligidas pelas guerras desde 1945 - um declínio que ficou ainda mais pronunciado nos últimos 20 anos. Mas não podemos negar que continuamos a enfrentar graves problemas, incluindo a ameaça de mudanças climáticas catastróficas. Ainda assim, existem razões para ter esperanças de um avanço no campo moral. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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