22 de dezembro de 2013

Um ícone de carne e osso, Nadine Gordimer y Nelson Mandela

Sobre uma amizade com Nelson Mandela
RESUMO A escritora sul-africana Nadine Gordimer, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1991, comenta sua convivência com o compatriota Nelson Mandela e sublinha como o líder político, morto no dia 5 deste mês, era, no dia a dia, muito mais doce e bem-humorado do que o retrato corrente dele dá a entender.
NADINE GORDIMER
tradução CLARA ALLAIN
TER VIVIDO ao mesmo tempo e no mesmo país de Nelson Rolihlahla Mandela representou um norte e um privilégio que nós, sul-africanos, compartilhamos. Eu tive ainda o privilégio de tornar-me amiga dele. Nos conhecemos em 1964, durante o julgamento de Rivonia, no qual ele estava sendo julgado por atos de sabotagem contra o governo, e eu estava presente no tribunal quando ele foi sentenciado à prisão perpétua.
Em 1979 escrevi um romance, "A Filha de Burger", sobre o tema da vida familiar dos filhos de revolucionários, uma vida governada pela fé política de seus pais e pela ameaça diária do encarceramento. Não sei como o livro, proibido na África do Sul logo após ser publicado, foi levado clandestinamente até Mandela na prisão de Robben Island. Mas ele, o leitor mais rigoroso que eu poderia ter desejado, me escreveu uma carta demonstrando profunda aceitação e compreensão do livro.
Mesmo quando não vinha a público nenhuma notícia a respeito dele nem havia qualquer indicação sobre o que ele estaria pensando ou planejando para continuar a luta pelo fim do apartheid, resguardávamos suas convicções, os discursos que ele fizera enquanto estava fisicamente presente entre nós.
Para um espírito como o dele, "muros não fazem uma prisão"; seu espírito não podia ficar sob a custódia do apartheid. Ainda tínhamos presente sua mentalidade política. Pude manter contato com Mandela durante esse período graças ao notável George Bizos, seu mais-do-que-advogado, que ficou ao lado dele mesmo durante o isolamento de Robben Island.
Em 1985, P. W. Botha, presidente do regime do apartheid, ofereceu a Mandela a liberdade, desde que ele renunciasse incondicionalmente a toda violência como instrumento político. A resposta de Mandela foi lida por sua filha Zindzi num estádio enorme em Soweto: "Que ele renuncie à violência. Que ele diga que vai desmontar o apartheid. Que ele desfaça a proibição da organização do povo, o Congresso Nacional Africano. Não posso e não vou assumir qualquer compromisso enquanto eu e vocês, o povo, não formos livres".
Até ele ser transferido, em 1982, da prisão de Robben Island para outra, destinada a presos comuns, na porção continental da Cidade do Cabo, Winnie Madikizela-Mandela, com quem ele era casado, e por quem nutria um amor escancaradamente apaixonado, só podia visitá-lo sob severas restrições. Finalmente, em 1990, Nelson Mandela seria visto em liberdade, de mãos dadas com sua mulher.
força esgotada Em 1990, o presidente F. W. de Klerk, um tipo muito particular de realista, viu que o apartheid era uma força que se esgotara. Ele revogou a proibição ao CNA e a seus aliados e filiados e libertou os prisioneiros políticos remanescentes. Reagi com alguma descrença quando George Bizos me disse que Mandela, recém-libertado, queria me ver. Acho que, com certa vaidade de escritora, pensei que o grande homem quisesse conversar comigo sobre "A Filha de Burger".
Alguns dias depois, estávamos a sós em Johannesburgo. Não foi sobre meu livro que ele falou, mas sobre o fato de ter descoberto, em seu primeiro dia de liberdade, que Winnie Mandela tinha um amante. Essa notícia devastadora só seria levada a público no divórcio deles, seis anos mais tarde.
Eu nunca antes havia falado nisso porque acredito que a dimensão de seu sacrifício, a força que ele demonstrava na forma como vivia, não era reservada somente ao seu "éthos" político. Seu modo de viver era viver pela liberdade dos outros.
ÂMBITO PRIVADO A Convenção para a África do Sul Democrática, ou Codesa, que se reuniu pela primeira vez no ano seguinte, foi realizada num prédio chamado World Trade Centre, mas, em alguns momentos, os participantes, entre eles membros do CNA, precisavam ter conversas em âmbito privado. Havia acordos de vida e morte a serem selados, sob a liderança suprema de Mandela, disposto a ouvir aquele que, no momento, representava o poder do povo contra as forças fortemente armadas do apartheid, financiadas por aliados ocidentais.
Camaradas de diferentes campos de batalha, à frente de partidos como o Comunista sul-africano, o Congresso Pan-Africanista e o da Liberdade Inkatha, cada um com ideias próprias sobre como deveria ser criada a democracia, queriam se reunir com a CNA a salvo dos espiões de De Klerk.
Um líder do CNA escolheu a casa em que eu vivia com meu marido, Reinhold Cassirer, num subúrbio branco de Johannesburgo, como local de encontro. É claro que não tínhamos conhecimento do que era dito. Eu levava uma bandeja de chá até a varanda onde o grupo se reuniu diversas vezes. Apenas em uma ocasião Mandela esteve entre eles. Eu não ficava ouvindo de soslaio.
A Codesa foi tema de reportagens e análises exaustivas na imprensa, inclusive a africâner, que engoliu em seco, tentando, por lealdade aos líderes do apartheid envolvidos, ser indulgente com aquele processo inacreditável.
Mandela não era --não àquela altura-- um ícone nem para os negros sul-africanos nem para os brancos que integraram a luta. Alguns africâneres que passaram a condenar o regime racista sentiram um alívio tingido de culpa, torcendo por algum acordo de forças que suavizasse a condenação do apartheid pelo mundo.
Mandela: não uma figura esculpida em pedra, mas um homem alto, de carne e osso, que o sofrimento não fez vingativo, e sim ainda mais humano --mesmo em relação aos criadores da prisão que era o apartheid. Ele seria capaz de manter um diálogo natural com aqueles que haviam impedido milhões de sul-africanos negros de exercer o papel de cidadãos em seu país.
Conforme a Codesa prosseguiu, as negociações estancaram, e a certa altura se viram ameaçadas por um confronto violento entre a polícia e um grupo de extremistas pró-apartheid na entrada do edifício onde transcorriam as discussões. A Codesa se concluiria meses mais tarde, sob impasse. Sua maior realização foi, sem dúvida, o fato de ter aberto o caminho para a nova Constituição, estabelecendo direitos iguais para todas as pessoas na África do Sul.
PAZ Em 1993, quando anunciou-se que Nelson Mandela receberia o Nobel da Paz, nossa alegria foi levemente abalada pela decisão do comitê de dar o prêmio também a De Klerk. Haveria uma cerimônia em Oslo para os dois laureados. George Bizos e eu fomos convidados a integrar a comitiva de Mandela. Viajamos para a Noruega ao lado dele e de outros líderes do CNA e tivemos a experiência inesquecível de vê-lo receber a honraria.
Depois da cerimônia, tivemos outro tipo de experiência. Como participantes da comitiva, saímos à sacada do hotel onde todos nós, incluindo Madiba (como Mandela era conhecido), estávamos hospedados. Diante de nossos olhos, uma enorme multidão, composta de pessoas de diferentes nacionalidades, o saudava cantando temas de libertação do CNA. Foi um momento de êxtase.
George e eu notamos De Klerk e sua mulher numa sacada adjacente e não pudemos crer no que vimos a seguir. Os De Klerk deram as costas à multidão exultante que ocupava a rua e se retiraram para dentro do hotel. Teria De Klerk percebido apenas então que as canções não eram para ele?
Nos últimos anos de vida de Madiba, eu o visitei vez e outra na casa grande, elegante e confortável, que lhe tinha sido dada em um subúrbio de alto padrão de Johannesburgo. George e eu tomávamos o café da manhã com ele ali. Mandela se levantava tarde, numa concessão à idade avançada, de modo que era mais como um "brunch".
Ele presidia a mesa em seu lugar habitual na cabeceira, como chefe da casa. Da cozinha ali ao lado, empregados cordiais traziam uma fartura de comidas simples. Mostravam um prato e outro a Mandela, ouvindo suas perguntas e ordens. O café da manhã era sua refeição favorita e era também a hora em que gostava de receber pessoas.
Depois disso, íamos à sala de estar, onde Madiba se sentava em sua cadeira especial. De vez em quando, estendia a mão para segurar a de George, que havia enfrentado com ele questionamentos, não apenas nos tribunais.
Depois de me cumprimentar, apertando minha mão em sua mão grande, de dedos fortes, ele perguntava a George sobre vários companheiros do CNA que haviam estado ao seu lado na prisão e fora dela. Às vezes reagia às respostas com risos ou algum comentário mais reflexivo.
O retrato geral que vem se fazendo de Mandela não capturou ainda sua vivacidade, o humor ágil que demonstrava sob circunstâncias surpreendentes. Em 1998 ele se casou com Graça Machel, combatente da guerra que derrubou o governo colonial português em Moçambique e viúva de Samora Machel, o presidente do país, morto em um acidente de avião que teria sido arquitetado por sul-africanos partidários do apartheid. Assim, Machel foi uma mulher que se casou com dois presidentes.
Ao final da cerimônia de casamento, após as declarações de "aceito" e os parabéns animados, ela anunciou que conservaria o sobrenome Machel. Indagado sobre o que sentia com relação a isso, Mandela respondeu: "Ainda bem que ela não quis que eu adotasse o sobrenome dela".
A profunda capacidade de compreensão humana que Mandela tinha veio à luz de diversas maneiras. Uma vez eu estava com ele em sua casa quando Zindzi, a mais jovem das duas filhas que ele teve com Winnie, passou para visitá-lo. Pai e filha se abraçaram, e ele perguntou se ela queria alguma coisa --talvez algo para comer?


Ela lamentou e disse que não podia ficar --sua mãe a aguardava no carro. Madiba deu de ombros e insistiu: "Vá buscá-la!". Minutos depois, Winnie entrou na sala, a convidada sorridente e bem-vinda do homem com quem havia compartilhado um amor constante, marcado por prisões e despedidas, ao longo daquele que havia sido como outro casamento: a luta pela libertação da África do Sul.
Folha de S.Paulo, 22/12/2013

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