QUATRO MESES APÓS INFARTO E ANEURISMA, ESCRITOR DIZ QUE CONCLUIU PRIMEIRA PARTE DA OBRA EM QUE TRABALHA HÁ 33 ANOS
"Mexeu com o físico, mas com a cabeça não buliu, não. Se você quiser, recito todinho o episódio de Inês de Castro, de Os Lusíadas'", brincou Ariano Suassuna, 86, na última terça-feira.
Fazia alusão ao copioso trecho do clássico português, mas deu várias outras provas de que falava a verdade.
Na tarde/noite daquele dia, quase quatro meses depois de sofrer um infarto (agora ele revela terem sido dois) e tratar um aneurisma cerebral, o escritor e dramaturgo recebeu a Folha em sua casa, no Recife, para uma entrevista --a primeira depois de duas internações e do repouso forçado.
Dizendo-se cansado, optou por falar deitado em sua cama. Acabara de posar para fotos e na véspera retomara suas aulas-espetáculos com um tributo ao compositor Capiba, uma palestra intercalada por música e dança de uma hora e 45 minutos.
Mais magro que o habitual e aparentemente mais fraco (recusou o lanche que lhe chegou, uma fatia de bolo e água de coco), mantém, porém, a cabeça a mil. Em uma hora de entrevista, não perdeu em nenhum momento a lucidez ou a argúcia.
Recitou de memória versos inéditos de sua autoria (leia nos destaques abaixo) que estarão no romance em que trabalha há 33 anos e cujo primeiro volume, após seguidos adiamentos, ele diz ter enfim concluído, sob pressão dos problemas de saúde.
Para pôr fim ao primeiro livro daquela que considera a obra de sua vida --e que deverá ter sete volumes, mesclando romance, poesia, teatro e gravura--, Ariano afirma ter tido uma ajuda divina.
"Fiz um pacto com Deus: se ele achasse que o romance tinha alguma coisa de sacrílego ou de desrespeitoso, que interrompesse pela morte."
A obra concluída --ainda sem previsão de lançamento-- será um romance epistolar, chamado "O Jumento Sedutor". A série completa levará o nome de "A Ilumiara".
O autor de "Romance da Pedra do Reino" e "O Auto da Compadecida" falou ainda sobre morte e a aversão que sentiu da UTI e de política.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Folha - O senhor enfrentou problemas graves de saúde, acaba de pular uma fogueira braba...
Ariano Suassuna - [interrompendo] Na verdade eu pulei três fogueiras: eu tive dois infartos e um aneurisma estourou no meu cérebro.
Ariano Suassuna - [interrompendo] Na verdade eu pulei três fogueiras: eu tive dois infartos e um aneurisma estourou no meu cérebro.
Foram dois infartos, então?
Foram.
Foram.
E depois de quase quatro meses entre internações e repouso, o sr. retomou as atividades públicas com uma aula-espetáculo. Como se sente?
Eu fazia muita questão de dar essa aula. Disse para mim mesmo que só não dava essa aula se não tivesse a menor condição. E queria avaliar minhas forças.
Eu fazia muita questão de dar essa aula. Disse para mim mesmo que só não dava essa aula se não tivesse a menor condição. E queria avaliar minhas forças.
Como o corpo reagiu?
Dá para ir, senti que dá para retomar [as aulas-espetáculos] num ritmo mais leve.
Dá para ir, senti que dá para retomar [as aulas-espetáculos] num ritmo mais leve.
O sr. já disse que se recusava a morrer e que toda morte é como um suicídio. Como essa experiência afetou o modo com que o sr. lida com ela?
Não afetou, não. É claro que, objetivamente, eu sei que vou morrer. Nenhum de nós acredita que morrerá. A gente se porta a vida toda como se nunca fosse morrer, o que é muito bom. Porque se a gente for pensar na morte como uma coisa fundamental, inevitável e próxima, a gente vai perder o gosto de viver.
[Pensar que vai morrer] prejudica um pouco a qualidade de vida, e eu sou um apaixonado pela vida, amo profundamente a vida. Olhe que essa maldita tem me maltratado, mas eu gosto dela.
Não afetou, não. É claro que, objetivamente, eu sei que vou morrer. Nenhum de nós acredita que morrerá. A gente se porta a vida toda como se nunca fosse morrer, o que é muito bom. Porque se a gente for pensar na morte como uma coisa fundamental, inevitável e próxima, a gente vai perder o gosto de viver.
[Pensar que vai morrer] prejudica um pouco a qualidade de vida, e eu sou um apaixonado pela vida, amo profundamente a vida. Olhe que essa maldita tem me maltratado, mas eu gosto dela.
Essa experiência mudou alguma coisa no seu jeito de perceber o mundo e as pessoas?
Não. Poucos dias antes de adoecer eu dei uma entrevista em que me perguntaram se eu tinha medo da morte. E eu disse: eu não gosto de contar valentia antecipada, acho que a gente só pode dizer que não tem medo de alguma coisa depois de enfrentá-la. Agora, até onde eu vejo, eu não tenho medo da morte.
Eu tenho pena de morrer sem ter realizado certas coisas. Por exemplo: se eu visse que não dava para terminar o romance que escrevo, aí eu teria muita pena de morrer.
Quando eu estava no hospital e descobri que tinha tido um infarto, me agoniei muito porque tinha deixado o manuscrito aqui [em casa]. Eu disse: preciso conversar com Carlos Newton [Junior, acadêmico especialista na obra do escritor], dizer a ele como era, para levar adiante [o livro].
Primeiro eu dividi o livro grande em vários livros. Cada capítulo é escrito em forma de cartas, e toda carta termina do mesmo jeito.
Porque digo lá que fiz um pacto com Deus, e fiz mesmo: se ele achasse que o romance tinha alguma coisa de sacrílego ou de desrespeitoso, que interrompesse pela morte --coisa com a qual desde agora me declaro de acordo.
Meu acordo não vale nada num caso desse, mas por outro lado tem uma vantagem. Dou ideia da minha conformidade e da minha resignação e estou conseguindo, com a minha megalomania, um parceiro extraordinário.
O primeiro volume são seis cartas, todas as seis terminam do mesmo jeito, com as mesmas palavras.
Não. Poucos dias antes de adoecer eu dei uma entrevista em que me perguntaram se eu tinha medo da morte. E eu disse: eu não gosto de contar valentia antecipada, acho que a gente só pode dizer que não tem medo de alguma coisa depois de enfrentá-la. Agora, até onde eu vejo, eu não tenho medo da morte.
Eu tenho pena de morrer sem ter realizado certas coisas. Por exemplo: se eu visse que não dava para terminar o romance que escrevo, aí eu teria muita pena de morrer.
Quando eu estava no hospital e descobri que tinha tido um infarto, me agoniei muito porque tinha deixado o manuscrito aqui [em casa]. Eu disse: preciso conversar com Carlos Newton [Junior, acadêmico especialista na obra do escritor], dizer a ele como era, para levar adiante [o livro].
Primeiro eu dividi o livro grande em vários livros. Cada capítulo é escrito em forma de cartas, e toda carta termina do mesmo jeito.
Porque digo lá que fiz um pacto com Deus, e fiz mesmo: se ele achasse que o romance tinha alguma coisa de sacrílego ou de desrespeitoso, que interrompesse pela morte --coisa com a qual desde agora me declaro de acordo.
Meu acordo não vale nada num caso desse, mas por outro lado tem uma vantagem. Dou ideia da minha conformidade e da minha resignação e estou conseguindo, com a minha megalomania, um parceiro extraordinário.
O primeiro volume são seis cartas, todas as seis terminam do mesmo jeito, com as mesmas palavras.
Qual é o jeito, quais são as palavras?
[Uma assessora afirma: "Não diga o que não puder dizer"] A gente tem uma tendência a responder a verdade, né? É uma tentação desgraçada. Bom, todas terminam com um verso, um martelo gabinete e um martelo agalopado [martelos são formas poéticas usadas pelos cantadores nordestinos].
O martelo gabinete tem seis versos de dez sílabas, e o agalopado tem dez versos de dez sílabas.
Deixa eu ver se me lembro do martelo. Diz assim: [e recita de um só fôlego os dois trechos destacados abaixo].
Então, se eu morrer, o romance está terminado.
[Uma assessora afirma: "Não diga o que não puder dizer"] A gente tem uma tendência a responder a verdade, né? É uma tentação desgraçada. Bom, todas terminam com um verso, um martelo gabinete e um martelo agalopado [martelos são formas poéticas usadas pelos cantadores nordestinos].
O martelo gabinete tem seis versos de dez sílabas, e o agalopado tem dez versos de dez sílabas.
Deixa eu ver se me lembro do martelo. Diz assim: [e recita de um só fôlego os dois trechos destacados abaixo].
Então, se eu morrer, o romance está terminado.
Do que mais sentiu falta na internação? Conseguiu ler e escrever?
Olhe, um dos piores lugares do mundo é a tal da UTI. Vixe, nossa senhora, que lugar horroroso. A pessoa não tem privacidade para coisa nenhuma, uma coisa horrível. Não tem autonomia, é ruim demais. Ficar no hospital no quarto eu até não reclamo muito, não. Mas a tal da UTI... Minha atividade nesse período foi zero.
Olhe, um dos piores lugares do mundo é a tal da UTI. Vixe, nossa senhora, que lugar horroroso. A pessoa não tem privacidade para coisa nenhuma, uma coisa horrível. Não tem autonomia, é ruim demais. Ficar no hospital no quarto eu até não reclamo muito, não. Mas a tal da UTI... Minha atividade nesse período foi zero.
O sr. sempre apoiou Lula e Dilma e sempre apoiou também Eduardo Campos. Mas em 2014 eles serão adversários. O sr. já declarou apoio a Campos. Isso significa rompimento com Lula e Dilma?
Lula é Lula. Continuo um entusiasta dele. Agora, pelo meu gosto, Lula apoiaria Eduardo. Nem houve rompimento com Dilma, gosto muito dela também, mas meu relacionamento com ela é menos fraterno do que com Lula.
Lula é Lula. Continuo um entusiasta dele. Agora, pelo meu gosto, Lula apoiaria Eduardo. Nem houve rompimento com Dilma, gosto muito dela também, mas meu relacionamento com ela é menos fraterno do que com Lula.
O sr. costuma dizer que conhece Eduardo Campos desde menino, que foi amigo do pai [o escritor Maximiano Campos, 1941-1998] e do avô dele [o político Miguel Arraes, 1916-2005]. Trata-se de um apoio mais afetivo que político?
Eu digo isso realmente, e é verdade: Dudu foi companheiro de infância de meus filhos, morava aí na frente [numa casa defronte à do escritor], vivia aqui em casa.
Então tinha uma relação afetiva com ele, de um tio para um sobrinho. E ainda casou-se com uma sobrinha de Zélia [mulher de Suassuna].
Mas eu digo, e realmente é: considero Eduardo Campos o político mais brilhante que já conheci. Ele é de uma capacidade de articulação que você não pode imaginar, é paciente, é obstinado. Tem todas as qualidades de um político.
Eu digo isso realmente, e é verdade: Dudu foi companheiro de infância de meus filhos, morava aí na frente [numa casa defronte à do escritor], vivia aqui em casa.
Então tinha uma relação afetiva com ele, de um tio para um sobrinho. E ainda casou-se com uma sobrinha de Zélia [mulher de Suassuna].
Mas eu digo, e realmente é: considero Eduardo Campos o político mais brilhante que já conheci. Ele é de uma capacidade de articulação que você não pode imaginar, é paciente, é obstinado. Tem todas as qualidades de um político.
Há críticas ao fato de ele se utilizar de métodos que critica. Fez campanha para eleger a mãe para o TCU, formou uma coalizão de 14 partidos, com aliados como Inocêncio Oliveira e Severino Cavalcanti. Com o sr. vê essas críticas?
Entram por um ouvido e saem pelo outro. Isso é uma necessidade da ação política. Achei até muita graça quando Inocêncio Oliveira o apoiou. Estava todo mundo cortejando o apoio de Inocêncio, o PT, todo mundo. Quando ele apoiou Dudu, vieram dizer que ele aceitou o apoio de Inocêncio Oliveira. Política é assim mesmo.
Entram por um ouvido e saem pelo outro. Isso é uma necessidade da ação política. Achei até muita graça quando Inocêncio Oliveira o apoiou. Estava todo mundo cortejando o apoio de Inocêncio, o PT, todo mundo. Quando ele apoiou Dudu, vieram dizer que ele aceitou o apoio de Inocêncio Oliveira. Política é assim mesmo.
O sr. é bacharel em direito, foi advogado, nos seus principais livros há julgamentos. Como o sr. viu o julgamento do mensalão no Supremo? O que achou do resultado?
Aquilo foi uma coisa triste. De repente houve uma crispação desse problema. Não tenho elemento para provar nem ninguém tem, mas a gente sabe que isso não foi inaugurado naquele momento. Essas práticas existiam em todos os governos. Se você não fizer isso, não governa. Tem que questionar a própria existência do Congresso.
É bom que exista o Congresso? Eu acho que é. Agora, no Congresso existe esse tipo de coisa? Existe e vai continuar existindo.
Aquilo foi uma coisa triste. De repente houve uma crispação desse problema. Não tenho elemento para provar nem ninguém tem, mas a gente sabe que isso não foi inaugurado naquele momento. Essas práticas existiam em todos os governos. Se você não fizer isso, não governa. Tem que questionar a própria existência do Congresso.
É bom que exista o Congresso? Eu acho que é. Agora, no Congresso existe esse tipo de coisa? Existe e vai continuar existindo.
A compra de apoio político?
Sim. Todo mundo sabe que essa ideia de dois mandatos não foi obtida de graça, não.
Sim. Todo mundo sabe que essa ideia de dois mandatos não foi obtida de graça, não.
O sr. se refere ao esquema de compra de votos no Congresso para aprovar a emenda da reeleição durante o governo Fernando Henrique Cardoso [revelado pela Folha em 1997, mas nunca investigado]...
Sim.
Sim.
Leia versão ampliada
folha.com/no1388649
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