15 de junho de 2014

Criança não é cabo eleitoral

 

Por: Dioclécio Campos Junior

Um oceano de propaganda enganosa inunda a mente da nação brasileira. É instrumento usado pelo poder público e pela iniciativa privada visando, única e exclusivamente, interesses políticos pessoais ou pecuniários empresariais. 

O país vive a era de uma profissão sem limites éticos que se utiliza da psicologia das massas para produzir material midiático capaz de criar falsas necessidades e induzir as pessoas a consumir produtos e serviços destinados a supri-las. A publicidade comanda o espetáculo. É a ciência do condicionamento a serviço dos grupos dominantes. 

Vários exemplos confirmam tal conceito. Dois deles despertam reflexões críticas. O primeiro, é a aquisição de automóvel induzida pela propaganda comercial. As peças publicitárias recorrem a imagens ilusórias geradas para fascinar e seduzir potenciais compradores. 


Os carros só aparecem em locais em que nunca circularão depois de adquiridos. São exibidos em paisagens paradisíacas, velozes, autônomos. Jamais se mostra um veículo no cotidiano real, parado nos gigantescos congestionamentos do trânsito, sem qualquer chance de estacionar. Ademais, o governo reduz o valor do IPI e facilita o crédito para converter o cidadão em sofrido devedor crônico. 

O segundo, revoltante, é a propaganda de bebidas alcoólicas. Explora a fantasia mental das pessoas, tornando-as dependentes dessa modalidade de droga eivada de efeitos adversos não divulgados. Alcoolizam o êxtase da felicidade humana, excitada pelo estímulo sexual sempre presente nas mensagens televisivas que levam à embriaguez. 


A frase de alerta, “Se for dirigir, não beba”, é passada em velocidade incompatível com a leitura a que se destina. A classe dominante aliou-se a interesses que não os da cidadania ao aceitar a imposição da Fifa, liberando a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, durante a copa.

Vale lembrar que o conhecimento em que se baseia a psicologia das massas teve sólida contribuição do regime nazista. Foi por meio das estratégias objetivamente concebidas para mistificar a população que as verdades hitleristas, transformadas em dogmas, conquistaram apoios coletivos aos horrores praticados. Vem daí boa parte da doutrina do marketing adotada por sociedades atuais para condicionar e manter sob controle o comportamento populacional. 

As ações indispensáveis à dignidade da cidadania são tratadas como meras estratégias eleitoreiras, simplesmente diluídas nos investimentos propagandísticos que fundamentam a garantia de permanência no poder. Manipulação do pensamento coletivo é hoje a lógica preferencial dos políticos ocupantes de cargos públicos. 


Trata-se de prática bem mais perniciosa do que a da iniciativa privada porque se vale de recursos do erário para custear empresas de publicidade, às quais atribuem a missão de promover o prestígio dos governos. É o povo pagando para ser enganado. Tornou-se mesquinha cultura nacional. Muitos governantes agem assim. Sob indecoroso pretexto de prestação de contas à sociedade, fazem marketing contínuo para hipnotizar o eleitorado mediante falas e imagens que falseiam a realidade. 

Os legítimos direitos dos cidadãos restam à deriva. O maior deles, a prioridade absoluta da primeira infância, é ignorado pelos dirigentes. Nada fazem para reverter tamanha negligência. Só vislumbram crianças no cenário eleitoral. Não faltam exemplos. O governo da capital da República anuncia, com pompa e circunstância, a inauguração de sete creches. As imagens são bonitas, mas a realidade é feia. 


A demanda de educação infantil permanece sem resposta. Se em menos de quatro anos aqui se construiu o segundo estádio mais caro do mundo, por que apenas sete pequenas creches? Da mesma forma, a presidente da República prometeu entregar 6 mil creches durante seu mandato, já prestes a expirar. Nem a metade foi inaugurada. Das 3 milhões de crianças que nascem anualmente no país, a maioria continua sem acesso aos cuidados que deveriam ser primordiais nessa idade. Não por carência de recursos econômicos. Mas por desmazelo relativamente às reais primazias da população. 

Marketing de campanha requer beldade humana para enternecer as multidões de votantes. Os políticos não hesitam. Usam e abusam da criança. Da copa do mundo à eleição, os candidatos estarão acariciando e beijando tais criaturas como se de fato as respeitassem nos seus direitos. Puro jogo de cena. Querem apenas faturar votos a partir da beleza infantil, que nada tem a ver com a fealdade do carreirismo político. Criança merece respeito. Não é cabo eleitoral.


*DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR
Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium (dicamposjr@gmail.com)

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