3 de maio de 2012

Anos da ditadura na Argentina


‘Não podíamos fuzilá-los’ - CEFERINO REATO

Sentado numa cadeira de plástico ao pé de uma cama modesta na cela 5 da prisão federal situada no Campo de Maio, o ex-general Jorge Rafael Videla explicou com detalhes como foram tomadas as decisões sobre os detidos durante os anos da ditadura (1976-1983), como foram confeccionadas as listas de pessoas que deviam ser presas e em que consistiu o método da “Disposição Final”, nome adotado pelas Forças Armadas para indicar a forma em que se decidiu o destino de milhares de prisioneiros.

Sem arrependimento ou autocrítica, mas confessando pela primeira vez sentir “um incômodo”, “um peso na alma”, o homem forte da ditadura explicou cruamente como os militares analisavam a situação daquele momento. “Digamos que eram sete ou oito mil as pessoas que deviam morrer para ganharmos a guerra contra a subversão; não podíamos fuzilá-las. Tampouco podíamos levá-las à Justiça.”

Sobre a “Disposição Final”: “São duas palavras muito militares e significam tirar de serviço uma coisa que se torna inservível. Quando, por exemplo, se fala de uma roupa que já não se usa ou não serve porque está gasta, passa-se à Disposição Final. Já não tem vida útil.”

O método incluiu essas etapas:

A detenção ou o sequestro de milhares de “líderes sociais” e “subversivos”, segundo listas que “foram elaboradas em janeiro e fevereiro de 1976, antes do golpe, com a colaboração de empresários, sindicalistas, professores e dirigentes políticos estudantis”.

Os interrogatórios em lugares secretosou clandestinos. A morte dos detentos considerados “irrecuperáveis”, geralmente em reuniões específicas encabeçadas pelo chefe de cada uma das cinco zonas em que o país foi dividido.

O desaparecimento dos corpos, que eram jogados ao mar, num rio, num riacho ou num dique; ou enterrados em lugares secretos, ou queimados num forno constituído por uma pira de pneus de automóveis. Naqueles anos de chumbo, os chefes militares tinham chegado à conclusão que não podiam levar os detidos à Justiça: recordavam que os processados e condenados por “atos subversivos” durante o governo do general Alejandro Lanusse foram liberados como heróis após a assunção do presidente peronista Héctor Cámpora, em 25 de maio de 1973, à noite.

“Tampouco podíamos fuzilá-las. Como fuzilaríamos tanta gente? A Justiça espanhola havia condenado à morte três membros do ETA, uma decisão que Franco confirmou apesar dos protestos de boa parte do mundo: só pôde executar o primeiro, e isso porque era Franco. Também havia o ressentimento mundial que provocara a repressão de (Augusto) Pinochet no Chile”, afirmou Videla.

Perguntas me perseguiam há anos, como seguramente a tantos argentinos: quando, como, onde e por que os militares tomaram a decisão de matar e fazer desaparecer essas pessoas? Por que não as enviaram a um juiz ou as fuzilaram? Por que pensaram que semelhante ausência seria esquecida? Por que as detiveram em lugares secretos? Como justificavam a tortura? Qual foi a influência da chamada “Doutrina Francesa”? Estão arrependidos? Foi uma decisão unânime da cúpula das Forças Armadas? Qual era o papel de Videla? Existem listas dessas vítimas? Onde estão seus restos? Como os militares, entre eles, se referiam a essa situação? Podiam os militares de menor graduação desobedecer a essas ordens? Houve quem lhes desobedecesse? Quem, como, quando e onde decidiam a Disposição Final de cada um dos detidos? Houve um plano sistemático para roubar os filhos dos detidos e entregá-los a famílias que lhes mudaram a identidade? Se não houve, por que foram tantas as crianças apropriadas por famílias ligadas ao regime militar?

O ex-ditador continua pensando que “não havia outra solução. Estávamos de acordo em que era o preço a pagar para ganhar a guerra e necessitávamos que não fosse evidente para que a sociedade não soubesse. Por isso, para não provocar protestos dentro e fora do país, chegou-se à decisão de que essa gente deveria desaparecer; cada desaparecimento pode ser entendido certamente como a dissimulação de uma morte”.

Videla esclarece uma pergunta que o kirchnerismo utiliza cada vez que tem necessidade: onde estavam os que agora nos criticam quando os militares matavam e faziam desaparecer nossos companheiros? Como se Néstor e Cristina Kirchner tivessem se destacado por sua luta a favor dos direitos humanos durante o governo militar. O governo aproveita essa “má coincidência” de tantos, mas Videla revela que, precisamente, o objetivo da “Disposição Final” foi impedir que o povo soubesse o que estava se passando.

Videla estabelece uma continuidade entre a repressão ilegal do processo com o governo constitucional do peronismo, mais precisamente com os decretos firmados pelo presidente interino Ítalo Luder, em 6 de outubro de 1975. “Os desaparecimentos se dão em seguida aos decretos de Luder, que nos deram licença para matar. Do ponto de vista estritamente militar, não necessitávamos do golpe; foi um erro porque ele tirou legitimidade democrática da guerra contra a subversão.”

Foram nove entrevistas que somaram 20 horas entre outubro do ano passado e março de 2012, nas quais Videla respondeu a todas as perguntas sobre a ditadura que chefiou durante cinco anos, entre 1976 e 1981, quando foi substituído por seu amigo e aliado, o general Roberto Viola. O tema principal? Os milhares de desaparecidos, a ferida mais profunda causada por seu governo.

Mas não foi o único tema: o livro “Disposição Final” explica a ditadura por dentro a partir de entrevistas com Videla, mas também com outros militares e ex-militares, políticos, sindicalistas e funcionários. E suas relações com empresários, EUA, URSS, imprensa, peronismo, radicalismo e PartidoComunista, entre outros fatores.

Como sustentou o semiólogo, filósofo e historiador búlgaro-francês Tzvetan Todorov em recente artigo no diário “El País”, “se quisermos compreender os desastres passados, condição prévia indispensável para qualquer tentativa de impedir que se repitam, o que devemos fazer é ir aos que cometeram esses atos”. E colocar esses fatos em seu contexto histórico porque, segundo dizia Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, não por seu livre arbítrio, mas sob aquelas circunstâncias em que se encontram diretamente, que existem e lhes foram legadas pelo passado”.

CEFERINO REATO é jornalista, colunista do “La Nación”/GDA e autor do livro “Videla: a confissão”

O Globo
03/05/2012

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