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Causou muito impacto a decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar constitucional o sistema de cotas para admissão de alunos negros na Universidade de Brasília. A princípio, também fiquei surpreso. Depois, pensei. O Supremo apenas julgou as cotas constitucionais. Por que não o seriam? Desde a Oração aos Moços, de Rui Barbosa, em 1920, a doutrina jurídica brasileira - entronizada na Constituição de 1988 - é que a regra da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. "Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade seria desigualdade flagrante" e, portanto, inconstitucional, concluiria Rui, como concluíram unanimemente os ministro do Supremo.
Não há dúvida de que as raízes profundas da escravidão deixam os negros em condições inferiores aos brancos para competir pelas vagas nas universidades públicas. Mas será que as cotas são um instrumento apropriado para compensar essa desigualdade educacional?
Como economista e ex-presidente do BNDES, não resisto a uma comparação que me ajuda a raciocinar sobre o problema. Trata-se do requisito imposto pelo BNDES a todas as empresas que financia. Elas têm que comprar pelo menos 65% de seus insumos de fabricantes nacionais. Lembro-me que, quando fui presidente da instituição, quis acabar com essa cota discriminatória - e o mundo quase desabou sobre minha cabeça! Queria acabar com as cotas do BNDES não porque as achasse inconstitucionais, mas porque as achava inapropriadas. Com a roupagem elegante de promoverem a indústria nacional, o que fazem é garantir a permanência de monopólios e ineficiências na provisão de insumos industriais, aumentando o chamado custo Brasil. Economistas são capazes de desenhar mecanismos alternativos para ajudar temporariamente indústrias nascentes a ganharem escala e produtividade, sem a necessidade de cotas discriminatórias.
Assim também raciocino no caso das cotas da UnB. Reconheço os efeitos da desigualdade sobre a capacidade de entrada do negros na universidade. Admito que, se conseguissem entrar, muitos poderiam, ao longo dos quatro, cinco anos de estudos superiores, superarem as diferenças iniciais e se tornarem profissionais altamente produtivos. O ponto, entretanto, é que as cotas não identificam adequadamente aqueles que precisam de um "empurrãozinho" inicial, dado o ponto de partida ruim de que foram vítimas, para chegarem com sucesso à reta final. Melhor do que as cotas seria um sistema - à semelhança daquele adotado pela Universidade de Campinas desde 2005 - de dar um bônus na nota dos exames de admissão para os que se apresentam ao vestibular com deficiências educacionais, que herdaram por sua condição social desprivilegiada.
As cotas para negros não são, assim, o melhor meio de minorar a desigualdade educacional. Independentemente da cor, as pessoas têm diferentes oportunidades educacionais que não são resolvidas pelas cotas. No entanto, poderia argumentar-se que, além da desigualdade educacional, negros sofrem discriminação, e isso coloca empecilhos adicionais a seu desenvolvimento pessoal e educacional. Mas essa discriminação é racismo. E racismo é uma prática que constitui crime inafiançável e imprescritível em nossa Constituição, sujeita à pena de reclusão. Racismo se combate com o antirracismo. Introduzir a variável raça como critério de política pública não é praticar o antirracismo. Ao contrário, é legitimar um critério racial que não corresponde à nossa ambição como sociedade de assegurar os direitos civis para todos.
Edmar l. Bacha é economista e foi presidente do BNDES em 1995.
O Globo
03/05/2012
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