Questões cuja gravidade mal começara a ser reconhecida na década de 1960 foram
definitivamente inseridas na agenda política global há 40 anos pela Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Reunida em Estocolmo, a
comunidade internacional reconheceu, em junho de 1972, que os imperativos
nacionais de desenvolvimento e os cuidados ambientais teriam de ser tratados
como duas faces da mesma moeda. Jamais uma deveria suplantar a outra em
negociações multilaterais.
Tal concepção foi fortalecida com a paulatina assimilação do slogan
"desenvolvimento sustentável", que timidamente emergira no final da década de
1970, mas se legitimaria dez anos depois com a profunda influência que exerceu o
relatório "Nosso Futuro Comum" da Comissão Brundtland (1987) na preparação da
Cúpula da Terra (1992).
No entanto, a evolução das instituições globais evidenciou uma chocante
discrepância. As ambições desenvolvimentistas foram até exageradamente
respeitadas em todas as negociações ambientais, como atesta, por exemplo, o
Protocolo de Kyoto. Praticamente o inverso ocorreu nos entendimentos
multilaterais sobre o desenvolvimento, como escancaram os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODMs). Enquanto o protocolo travou qualquer
possibilidade de abordagem prudente da principal ameaça ambiental, a mais
importante declaração sobre as perspectivas de desenvolvimento humano para o
século XXI desdenhou a seriedade de praticamente todas as fronteiras ecológicas
globais.
Tamanha distância deveria estar prestes a ser encurtada pelo processo
intergovernamental que viabilizará a desejável metamorfose dos ODM em
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). A ONU já pavimentou duas vias
para a construção da agenda pós-2015, como foi comentado neste mesmo espaço do
Valor em 21/8. Mas elas levarão a destino bem diferente se prevalecer a concepção
proposta em relatório que pretende orientar essa reflexão coletiva, resultado de
amplo mutirão que envolveu nada menos do que sessenta organizações
internacionais, das quais apenas sete com mandato em sustentabilidade ambiental:
"Realizando o futuro que queremos para todos."
Esse relatório propõe que os Objetivos pós-2015 - cuja sigla deveria mudar de
ODMs para ODSs - respeitem, antes de tudo, três princípios fundamentais: direitos
humanos, igualdade e sustentabilidade. Se tal conselho for aceito, o avanço será
significativo, pois os atuais ODMs são obsessivamente orientados pelo mantra do
crescimento econômico que erradica a pobreza. Todavia, na realidade dos fatos, o
meio ambiente é a condição material - biogeofísica - de qualquer possibilidade de
desenvolvimento humano. Por isso, direitos humanos e igualdade são princípios do
desenvolvimento, assim com a Conservação Ecossistêmica e a Regulação Climática
são princípios de sua sustentabilidade ambiental. É contra a realidade desagregar a
noção de desenvolvimento sem fazer o mesmo com a noção de sustentabilidade,
numa operação retórica que inevitavelmente envolve perigoso desprezo pela base
material do desenvolvimento humano.
O ilusionismo ainda aumenta quando o relatório diz que o respeito desses três
princípios logo engendraria progressos em quatro dimensões: desenvolvimento
econômico inclusivo; desenvolvimento social inclusivo; paz/segurança; e
sustentabilidade ambiental. A face da moeda que na definição dos princípios já
ficara reduzida a um terço, viraria um quarto nesse desdobramento operacional dos
Objetivos.
Claro, tudo isso até pode ser considerado muito positivo em comparação à atual
ponderação dos ODMs, em que a sustentabilidade ambiental não passa de um
oitavo e ainda ignora as reais fronteiras ecológicas. É preciso notar, contudo, que
qualquer dessas piruetas viola o terceiro princípio da Declaração do Rio: "O direito
ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a atender equitativamente as
necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras."
Foi na medonha Conferência de Joanesburgo, em 2002, que esse terceiro princípio
adotado na Cúpula da Terra passou a ser conspurcado pela mecânica cantilena de
que a sustentabilidade do desenvolvimento exigiria um imaginário "equilíbrio" de
"três pilares:" econômico, social, e ambiental. Malabarismo que foi cabalmente
confirmado pela ainda mais prolixa declaração da Rio+20, mesmo que em 95% das
ocorrências ela tenha rejeitado o equilibrismo de "pilares" em favor da mais
razoável noção de "dimensões" do desenvolvimento.
De qualquer forma, parece altamente improvável que a necessária paridade entre
desenvolvimento e sustentabilidade seja resgatada pelo painel consultivo sobre a
agenda pós-2015 do desenvolvimento, criado no fim de julho pelo secretário-geral
da ONU, Ban Ki-moon, para remontar os ODMs, ou pelo grupo de trabalho para os
ODSs que muito em breve será ungido pela 67ª Assembleia Geral das Nações
Unidas. No máximo diminuirão o prejuízo.
José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais
da Universidade de São Paulo (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), escreve
mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br
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