Carta Capital Digital
04.09.2012 14:52
Que Brasil desejamos legar
às próximas gerações? A pergunta é pertinente porque o futuro está sendo
construído hoje e, na sociedade capitalista globalizada e em crise, não há mais
espaço seja para o improviso, seja para o voluntarismo, e muito menos para a
incompetência. Nunca foi tão necessário o planejamento, estratégico e de longo
prazo. Mas dele nos estamos afastando, cingidos pela necessidade de dar
respostas imediatas, e por isso pontuais, ao dia-a-dia da crise.
Há ingênuos e gente sabida para
todos os gostos e preferências e interesses, nacionais ou não. Para os muito
ingênuos, nosso destino está resolvido como futuros exportadores de óleo cru,
como a Venezuela (que fornece aos desenvolvidos, EUA à frente, quantidades
fabulosas de petróleo, para tudo importar, inclusive legumes; país riquíssimo
afundado na mais primitiva estrutura econômica), como o Iraque, como o Irã, ou
a Arábia Saudita, ou os Emirados Árabes e outros. Agora, pergunto ao leitor:
Você conhece algum grande exportador de petróleo que se tenha transformado em
uma grande nação?
A muitos ingênuos (ou sabidos
demais) também parece irrelevante que nossas empresas de apoio à produção
do pré-sal estejam sendo vendidas, como estão, uma a uma a grupos
multinacionais. Parece-lhes a coisa mais natural do mundo nosso destino
imediato como principal fornecedor de óleo para os EUA, substituindo a
‘inconfiável’ Venezuela de hoje e o turbulento e caro mercado árabe, que tantas
guerras e intervenções caríssimas exige do maior exército do mundo.
Para esses ingênuos, não é
espantador nosso futuro de reféns dos interesses estratégicos dos EUA.
Por outro lado, os “muito
sabidos” desdenham da industrialização, de seu papel não só econômico-social,
como estratégico. Peço ao leitor a indicação de algum grande país, alguma
nação rica e desenvolvida cuja economia dependa, tão-só, da roça ou do
agronegócio. Dito de outra forma: qual o país moderno que se desenvolveu sem
que se tenha industrializado?
Se o nosso país, de 2003 para
cá, redescobriu que o binômio ciência e tecnologia é a chave do
desenvolvimento, descobriu igualmente que a industrialização é que
capilariza a inovação e o progresso técnico, levando o desenvolvimento para a
população como um todo. No entanto, há os que, em pleno século XXI, redescobrem
a “vocação agrícola” do Brasil como o antígeno da industrialização. Esses desdenham
dos que falam em “desindustrialização”, quando o fato objetivo é que a
participação da indústria de transformação no PIB nacional, que no início dos
anos 80 era de 33%, caiu, em 2010, para 15,7%.
Há os que desdenham da
desnacionalização da indústria sobrevivente, mas o fato objetivo é que, só no
primeiro semestre deste ano, 167 empresas privadas brasileiras foram compradas
por multinacionais, em sua maioria com sede nos EUA (são dados da Pesquisa de
Fusões e Aquisições, da consultora KPMG). As empresas brasileiras
desnacionalizadas estavam preponderantemente nas áreas de serviços para
empresas, tecnologia da informação e produtos químicos e farmacêuticos, mas a
desnacionalização ocupa espaços crescentes também na agroindústria do etanol e
na química baseada na energia vegetal, áreas que identifico como estratégicas.
A taxa de juros caiu (na verdade,
desde agosto do ano passado até aqui caiu nove vezes, chegando ao patamar de
7,5% ao ano); a valorização cambial estancou, e o governo persegue, embora limitado
a fatias setoriais, a redução da carga tributária e acena para breve com a
queda do preço da energia elétrica e investimentos na logística de transportes.
Se os ambientalistas religiosos permitirem.
Mas, apesar dos esfprços
governamentais, o crescimento industrial não foi retomado e o PIB
continua sofrendo de raquitismo (a previsão para 2012 caiu, segundo o ‘mercado’
para 1,64%). E sem crescimento econômico – a fonte do desenvolvimento— todas as
demais metas, da eliminação da pobreza à autonomia em ciência e tecnologia,
passando por educação, segurança e defesa nacional, estarão descartadas. Uma
explicação é a baixa capacidade de inovação da indústria nacional lato sensu,
derivada precisamente do fato de a produção brasileira estar subordinada às
matrizes das multinacionais, herança do modelo neoliberal: elas produzem
tecnologia em suas sedes, enquanto as empresas privadas nacionais preferem
pagar royalties a investir em pesquisa. As empresas estatais, as únicas
que investiam em ciência e tecnologia, foram desbaratadas pelos governos dos
dois Fernandos.
Enquanto isso, os gastos da China
(já a segunda economia do mundo) com PID, vale dizer ciência, tecnologia e
inovação, são três vezes superiores aos do Brasil (em termos proporcionais ao
PIB de cada um) e deverá (lembremos: a China adota o planejamento) dobrar esse
valor até 2030.
Não há alternativa fora do
aumento dos investimentos públicos e privados.
Acresce levar em conta a
recessão das economias européias, japonesa e estadunidense, e a desaceleração
da China, com seus reflexos no Brasil: menos compras e esforço de todos para
vender mais, ao que se soma a cautela do capital internacional não
especulativo.
No Brasil, por exemplo, onde
encontrariam, em tese, terreno fértil para semear seus lucros, preferem os
capitalistas estrangeiros comprar nossas empresas ao invés de assumirem, com
novos investimentos, de que carecemos, novas iniciativas. Ou seja, na
crise deles, procuram explorar a nossa, através da aquisição de patrimônio
nacional já constituído, possibilitando mais remessas de lucros para o
exterior, sem nenhuma contribuição adicional para o nosso
desenvolvimento, nem mesmo geração de novos empregos.
Seja por força da abertura
comercial, seja por isso ou por aquilo, o peso das manufaturas na pauta
das exportações foi, em 2011, de apenas 36%, quando em 1980 havia atingido nada
menos que 59%. Vivemos assim um processo de contínua deterioração nos
termos de troca de produtos industriais, nos quais prepondera nossa dependência
de produtos de alta tecnologia. Seria este o momento de nossa indústria
valer-se das políticas governamentais que visam ao aumento da renda nacional,
e, por conseqüência óbvia, o crescimento do mercado interno.
Mas a indústria nacional não
está, sequer, atendendo às novas demandas do mercado interno, que assim se abre
para aumentar as importações vistas pelo governo como instrumento para evitar
desabastecimento e pressão inflacionária, e, ainda como estabilizador de
preços. Somos, hoje, exportadores de alimentos, carne, grãos e minérios (cujos
valores, aliás, estão em queda) por sinal, quase sempre sem nenhum valor
agregado e à mercê de progressivas políticas protecionistas dos importadores,
variantes desde taxas abusivas a restrições sanitárias. Em 1980, o setor de
bens de capital (termômetro do crescimento econômico) representou algo como 20%
da produção da indústria de transformação, mas em 2009 essa cifra já havia
caído para 10%. O que nos salva são as exportações para o Mercosul, notadamente
Argentina (o comércio bilateral alcançou 40 bilhões de dólares com
crescimento de 35% das exportações brasileiras) e Venezuela, para quem
exportamos predominantemente manufaturados (65% do total).
Crise à parte, o Brasil precisa
decidir qual é seu modelo de crescimento, como crescer, para onde crescer e
para quem crescer, enfrentando a disjuntiva Brasil dos primários ou do valor
agregado. O Brasil gerou 20 milhões de postos de trabalho nos últimos nove
anos: trabalho nas cidades, nos serviços, aumento, portanto que passou ao largo
do agronegócio. Os serviços representam 70% dos empregos abertos. Mas 95% das
ocupações geradas foram de até um salário-mínimo e meio (segundo o Ipea). Em
2002, mais de dois terços de nossas exportações eram destinados aos países
ricos, cifra hoje reduzida a 40%, com nossa oportuna opção pela América do Sul,
pela África e pela China, o que minimizou os efeitos da crise do chamado
“primeiro mundo”. E nada menos de 80% de nossas exportações para a China
são de produtos primários. Em 1980, a produção industrial brasileira (Gabriel
Palma, BBC, 13.07.2012) superava a do conjunto formado por China, Índia, Coréia
do Sul, Malásia e Tailândia; em 2010 representava tão somente 10% do total da
produção desses países.
Há, porém, aqueles que, por força
do pensamento mecanicista, afirmam que não há “desindustrialização” porque o
modelo do Brasil é o mesmo dos países ricos em crise, a saber, tornar-se
uma economia de serviços e produção de bens não materiais. Ora, nos ditos
países ricos esse movimento derivou da pós-industrialização, óbvia conseqüência
do alto desenvolvimento industrial, do intenso e permanente
desenvolvimento científico e tecnológico e da modernização dos serviços, e,
finalmente, como somatório de tudo isso (cujo pano de fundo é a imperialista
divisão internacional do trabalho), resultou da necessidade de transferir parte
da fabricação para outros países (como os asiáticos mais atrasados, em busca de
salários mais baixos e baixos índices de democracia), como instrumento de
redução de custos, conservado nas matrizes o desenvolvimento do know-how.
Ora, o caso brasileiro nada tem
em comum com este cenário, pois nosso parque industrial ainda está em
desenvolvimento e em busca de consolidação, podendo e devendo desempenhar papel
insubstituível como agente modernizador da economia e da sociedade brasileiras.
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