Jacques Monod, biólogo, e Albert Camus, escritor, não viraram o rosto diante da guerra e do stalinismo
Oito anos atrás, uma palestra citou o grande cientista francês Jacques Monod (1910-1976), Nobel em Medicina de 1965, em sua obra-prima "O Acaso e a Necessidade" (1970). Ele se justificava por incluir a palavra "filosofia" no subtítulo de um livro de ciência:
"Tenho uma só desculpa, mas a considero legítima: o dever que se impõe aos homens de ciência, hoje mais do que nunca, de pensar a sua disciplina no conjunto da cultura moderna, para enriquecer não só os conhecimentos tecnicamente importantes, mas também as ideias provenientes de sua ciência que eles possam tomar por humanamente significativas. A própria ingenuidade de um olhar novo (como o é sempre o da ciência) pode talvez esclarecer, como a luz de um novo dia, problemas ancestrais."
Não foi possível deixar de perguntar, na época: como pode escrever tão bem um mero biólogo molecular? E pensar tão bem?
Várias respostas a essas questões se encontram noutro livro precioso, "Brave Genius"("gênios de coragem"), de Sean B. Carroll. Subtítulo: "Um cientista, um filósofo e suas ousadas aventuras, da Resistência Francesa ao Prêmio Nobel".
O pesquisador é Monod, claro. A surpresa está no filósofo que Carroll perfila ao lado do descobridor do modelo "operon" de regulação da expressão gênica (que esta coluna se absterá de explicar): Albert Camus (1913-1960), Nobel de Literatura em 1957. O que teria o existencialista a ver com o cientista?
Muito. Para começar: a coragem, inseparável das biografias de ambos. O título do livro de Carroll destaca esse traço comum e se explica com uma citação de Denis Diderot (1713-1784) que abre seu prólogo: "O gênio está presente em cada época, mas os homens que o carregam dentro de si permanecem embotados até que eventos extraordinários ocorram para aquecer e derreter a massa de modo a que se derrame."
O biólogo e o escritor viveram de perto e muito perto um do outro, mas sem cruzar caminhos, a Segunda Guerra Mundial e a ocupação da França por Hitler. Ambos aderiram à Resistência e se tornaram companheiros de aventura dos comunistas --não por muito tempo.
Logo após a guerra, travaram contato e iniciaram uma amizade. Dois homens que presenciaram o absurdo maior, mas não viraram o rosto. Ao contrário, lançaram-se na ação, como recomendava Camus no clássico "O Mito de Sísifo".
Unia-os uma repulsa visceral e precoce à ditadura stalinista, que os afastaria do Partido Comunista Francês e de companheiros como Jean-Paul Sartre. Camus, já em 1946. Monod, em 1948, quando escreveu uma crítica devastadora da teoria lamarckista, antidarwinista e antimendeliana de Trofim Lysenko que se tornara a biologia oficial do Estado soviético.
Dez anos após a morte de Camus e dois depois de apoiar estudantes nas barricadas de Maio de 1968 em Paris, Monod abriria seu "O Acaso e a Necessidade"com uma epígrafe de "O Mito de Sísifo", retomando o programa do amigo: "A ânsia, a angústia de entender o sentido da própria existência, a demanda de racionalizá-la e justificá-la numa moldura consistente tem sido, e ainda é, uma das mais poderosas motivações da mente humana".
Diante das biografias e das bibliografias de Camus e Monod, há que lamentar: já não se forjam intelectuais como antigamente.
Folha de S.Paulo, 1/12/2013
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