Presidente pede ao mundo que deixe seu país fazer uma 'experiência' de regulamentação da produção e venda da droga
Projeto está prestes a ser votado no Senado; compra de cigarros de maconha passará a ser controlada pelo Estado
Sentado na chácara onde vive, nos arredores de Montevidéu, José Alberto Mujica Cordano filosofa: "As pessoas, nas suas condutas, não dão bola para a razão".
E não há nenhuma que explique o fato de esse senhor de 78 anos entrar para a história como o responsável por transformar o Uruguai no primeiro país a regulamentar produção e venda da maconha, algo inédito no mundo.
Baseado ele afirma que nunca fumou.
"Não defendo a maconha, gostaria que ela não existisse. Nenhum vício é bom. Vamos é regular um mercado que já existe. Não podemos fechar os olhos para isso. A via repressiva fracassou."
Em entrevista à Folha na zona rural de Rincón del Cerro, na chácara onde vive com a mulher, a senadora Lucía Topolansky, o presidente ressalta que o Uruguai vai regulamentar, e não legalizar a maconha. A venda será controlada pelo Estado.
Simulando de forma caricatural quem está sob efeito da droga, garante que o país não se transformará na terra do "fumo livre".
"Pedimos ao mundo que nos ajude a fazer essa experiência, que nos permita adotar um experimento sócio-político diante de um problema grave que é o narcotráfico", disse. "O efeito do narcotráfico é pior que o da droga."
Já aprovado na Câmara, o projeto de lei que regulamenta a droga permite ainda que os usuários, mediante licença, plantem a erva em casa.
De acordo com o governo, se quiserem sair da clandestinidade, os cerca de 200 mil usuários de maconha no país deverão se cadastrar para ter acesso limitado à droga.
A votação do projeto pode ser concluída nesta semana pelo Senado, último estágio antes da sanção presidencial. Na prática, a experiência começará no ano que vem.
Ainda será preciso regulamentar a medida, estabelecendo limite de cigarros que podem ser comprados --um número citado é 40 por mês.
A prerrogativa será restrita a uruguaios e residentes no país, uma forma de inibir o turismo da droga.
Como o governo Mujica tem maioria no Senado, espera-se que o projeto seja aprovado com folga.
REVOLUÇÕES
Será mais uma medida revolucionária do governo do ex-guerrilheiro, que já aprovou o casamento gay e legalizou o aborto.
País de tradição liberal, onde fumar maconha não é crime (ao contrário do Brasil), o Uruguai começou a discutir a regulação da droga há pelo menos dez anos.
"Propusemos a lei por causa das tradições do Uruguai. De 1914, 1915, até os anos 60, o álcool era monopólio do Estado. Por mais de 50 anos produzimos e vendemos nossa própria grapa, cachaça, rum. Por um valor maior, que era para direcionar recursos para a saúde pública. É o que vamos fazer agora".
O presidente cita outros vanguardismos do país de pouco mais de 3 milhões de habitantes, como a regulamentação da prostituição, o direito de divórcio pela vontade da mulher e a opção do Uruguai de ser um Estado laico. Todos esses pontos foram estabelecidos nas primeiras décadas do século passado.
Usando metáforas da vida no campo, Mujica lembra que mudar a sociedade é como plantar oliva, "não se pode esperar uma grande colheita logo de cara". "As causas humanas são de longo prazo."
Ele afirma que, se houver equívoco ou resultado negativo no processo de regulação da maconha, o governo voltará atrás. "Mas, se descobrimos coisas que podem servir como ferramenta para a humanidade, e se esse experimento na vida real valer a pena, poderemos ser um exemplo. Mas também a conclusão pode ser a de que não temos solução para isso, e assistiremos a uma humanidade cada vez mais doente."
Ele contou à Folha que uma das medidas para tentar restringir a circulação da maconha no Uruguai é a adoção de um código genético único nas plantas. "Molecularmente, será possível identificar a nossa maconha", disse.
Ele admite que seu governo está sendo pressionado pela comunidade internacional, sobretudo por países vizinhos, como o Brasil, temerosos de que a maconha uruguaia transborde as fronteiras. "Sempre vai haver pressão. Há um aparato no mundo que vive em reprimir e custa muito."
A resistência também vem de dentro. Pesquisas mostram que parte da população uruguaia é contrária à lei. "Há um custo político alto, ninguém quer pagar por isso. Ex-presidentes como Ricardo Lagos [Chile] e FHC defendem, mas o curioso é que fazem isso quando não são mais presidentes. Por que não defenderam quando eram presidentes?".
'O dogmatismo é uma doença da esquerda'
DO ENVIADO A MONTEVIDÉU
Badalado internacionalmente como o "presidente mais pobre do mundo", "o melhor presidente do mundo" e "o herói não reconhecido da América Latina", José Mujica diz achar graça dos clichês.
Na entrevista à Folha, ele também abordou temas como Mercosul e a esquerda latino-americana.
Mercosul
Está travado. As classes dirigentes, como a burguesia paulista e argentina, não entendem que estamos na época da integração. O Mercosul não vai caminhar se, de boa fé, não houver entendimento entre Brasil e Argentina.
Esquerda
O dogmatismo é uma doença crônica da esquerda latino-americana. Acreditamos que somos possuidores de uma verdade absoluta. A esquerda tem a doença de sempre ser apaixonada pelos modelos em que acredita. Mas se penso que meu vizinho deve pensar como eu, estamos fritos.
Estilo de vida
Há senhores acostumados com o poder, que se consideram representantes naturais dele e se sentem agredidos quando veem alguém que não pertence a essa classe e não renuncia a sua forma de viver. Eles não toleram. Tenho um respeito de pertencimento que não abandono, e isso dói em alguns. Essa luta tem diversas características. O Lula sofreu com isso por ser torneiro mecânico, gente do povo.
Acho graça desses estereótipos. Pobre é quem precisa de muito. Tenho um tipo de riqueza que muitos não ambicionam. Desprezo a acumulação de dinheiro. Tenho 78 anos e estou por um passo [da morte], vou acumular dinheiro?
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