15 de janeiro de 2014 | 2h 11
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Na medida em que fico mais velho e, como o Diabo, vou conhecendo melhor a ingratidão e a maldade humana, observo que os jornais - que a cada semana noticiam cada vez mais infâmias e desgraças - comprovam meus piores palpites.
Como entender a rede simultânea de negócios pessoais e de Estado da governadora do Maranhão, por exemplo, cujas prisões são explodidas à barbárie, forçando uma intervenção branca de Brasília numa medida tomada a pulso, pois que ela indicia o sistema prisional brasileiro como um todo?
Como ter prisões padrão Fifa para os mensaleiros e padrão nacional para os criminosos comuns? Esses presos que não são ninguém porque a eles faltam advogados sofisticados, amigos poderosos e compadres no governo? Ou, eis o ponto cego do sistema, sem filiação a alguma "facção" que controla por dentro e por fora o estabelecimento? E como ficar surpreso com a ausência de prisão e com a tal impunidade queremos liquidar se o nosso sistema legal é explicitamente desenhado para impedir que um alguém - um famoso - seja preso?
Como prender se as prisões continuam a ser lugares para "indivíduos" - para os sem laços com o mundo? Não há como ter um sistema democrático sem uma polícia e prisões decentes. Nenhuma pessoa pode ser presa duas vezes: uma pelo sistema legal e outra pelos poderes que agem dentro dos presídios.
*
Eu fazia esse comentário quando o prof. Richard Moneygrand me interrompeu e perguntou: "Você viu as duas notícias mais intrigantes da semana?. Sem dúvida. Elas não falam do que acabo de dizer?".
"Sim e não." Respondeu Moneygrand que, hospedando-se comigo em Niterói, abandonara a sua amada zona sul carioca, onde tem tanto amigos famosos e importantes. "A primeira grande notícia é a do fugitivo americano que preferiu voltar às grades do que enfrentar em liberdade o frio extremado que varre o meu país. Coisa que nenhum de vocês, brasileiros sem advogado, bons amigos e padrinhos no governo, seriam capazes de fazer. Aliás, o calor de certo modo impede algo semelhante porque seria impensável para o espírito reacionário brasileiro ter celas com ar condicionado."
E a segunda novidade? Questionei, um tanto irritado com meu amigo.
"Bem, disse ele, segurando com carinho a mão de sua sétima ou oitava esposa, a Jean Morris, uma ruiva alta e arredondada, especialista em genocídio e holocausto, de mais ou menos 35 anos. Dick Moneygrand, amigos, passou dos 80 e tantos, mas insiste em dizer que namora, fica apaixonado e escreve poesias para as suas Julietas, como ele diz em tom cretino. Afinal, inteligência nem sempre corresponde a bom discernimento.
"A segunda novidade - continuou meu amigo - é que Lady Gaga salvou do suicídio um jovem gay brasileiro, falando pessoalmente com ele pela internet. Essas novidades me libertam das infâmias políticas do vosso nobre país, obrigando-me a refletir sobre a arte e a vida."
"Devo continuar?" -, indagou meu velho mentor com aquele seu jeito tranquilo e superior que eu tanto invejo.
"Claro!" Respondi, aproveitando para renovar a dose do meu calado e invencível faixa preta escocês.
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Quando eu leio que um prisioneiro se entrega para fugir do frio eu entendo que não há nenhuma brecha entre vida e arte. A vida nos engloba; a ficção é apenas uma outra faceta da própria vida. O fato a ser visto é que nós acabamos para a vida, enquanto a vida, quando narrada num conto, romance ou filme, faz o oposto: É ela que acaba para nós como uma história - um livro a ser posto numa estante. Por isso, precisamos tão desesperadamente das narrativas. Elas, como os rituais, têm princípio meio e fim. A vida não tem. E nós, um dia, viramos histórias ou simples notícia, como dizia aquele poema do vosso Drummond.
"O escritor americano O. Henry - prosseguiu Moneygrand -, que foi por alguns anos presidiário em Ohio, escreveu um conto chamado O Policial e o Hino (publicado em 1904) no qual - veja como o mundo se repete - um vagabundo tenta ser preso (como sempre fazia) para escapar do inverno de Manhattan. Na prisão, como também mostra Chaplin, inspirado nas mesmas contradições da democracia igualitária e do capitalismo industrial, em Tempos Modernos (exibido em 1936), o vagabundo consciente, cínico e profissional de O. Henry transforma-se num involuntário desempregado e teria cama, comida e agasalho. Melhor a prisão do que o inverno num parque."
Parece fácil ir para prisão, mas O. Henry mostra que não é. Seu herói malandro tenta um bocado de truques para ser enjaulado. Do rotineiro comer e não pagar num restaurante; de bancar o maluco, gritando e pulando na rua, até o gesto violento de atirar uma pedra na vitrine de uma loja de luxo. No truque de comer sem pagar ele é impedido pelos garçons; no fingimento da loucura o policial pensa que ele é um estudante comemorando a vitória do time da sua universidade; nem quando é mais violento ele é preso, pois quem jogaria uma pedra numa vitrine e ficaria esperando pela polícia? O guarda vai atrás de um sujeito que corria atrás de um táxi. Ele tenta, então, roubar sem disfarce o guarda-chuva de um homem no balcão de um bar. Discutem, um policial se aproxima, o vagabundo profissional pensa que vai conseguir, mas o homem confessa que ele próprio havia encontrado o guarda-chuva por engano e concorda em deixá-lo com o nosso herói. Desesperado porque não conseguia ser preso, o malandro decide assediar uma jovem mulher. Mas logo descobre que a jovem é uma prostituta que lhe oferece um programa.
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