Sobre nuclear só há controvérsias: José Eli da Veiga
Coluna de José Eli da Veiga, publicada no Valor Econômico.
Ninguém discorda da absoluta necessidade de se impedir que arsenais de armas atômicas sejam usados. Mas esse consenso não resiste sequer à proposição de que o melhor caminho para se atingir tal objetivo seja o estrito cumprimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), em vigor desde março de 1970, ratificado por 189 países, com a única deserção da Coreia do Norte, em 1993.
O monitoramento do TNP tem sido relativamente eficaz em conter o número de nações com capacidade bélica nuclear. Principalmente por ter desestimulado a África do Sul e toda a América Latina. Mas esse regime foi incapaz de deter Israel, Índia e Paquistão, além da já citada aventura da Coreia do Norte, mais a atual suspeita sobre o Irã. Só que esse diminuto incremento de potências atômicas não evitou enorme escalada das armas nucleares no interior do "Clube dos 5", formado por Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido.
Pode-se dizer, então, que o TNP é mais um tratado de não proliferação de potências nucleares do que desse tipo de armas. E há quem considere muito melhor essa gradual distribuição geopolítica do poder nuclear do que o estrito cumprimento do TNP. Tese defendida por Kenneth N. Waltz, professor emérito de relações internacionais da Universidade da Califórnia, Berkeley. Frontalmente rebatida, com idêntico poder de persuasão, por seu colega Scott D. Sagan, de Stanford, no belo livro "The spread of nuclear weapons: a debate" (W.W. Norton, 1995).
Óbvia consequência desse debate só pode ser a divergência na estimativa dos riscos para a segurança global decorrentes do maior uso da energia nuclear para fins pacíficos, especialmente para geração de energia elétrica. Quanto aumentará o perigo de uso de arsenais atômicos atribuível às novas 49 centrais elétricas termonucleares atualmente em construção? Zero em países que já são potências nucleares: China (25), Rússia (seis), Índia (cinco), Paquistão (uma) e França (uma). Aumentará, mas quase nada, na Coreia do Sul (seis), Japão (duas), Taiwan (duas) e Finlândia (uma). Panorama que não se altera com a lista das 160 propostas ou projetos de construção até 2020.
Trágico engano, diz o outro lado. Afinal, tanto reatores nucleares quanto seus armazenamentos de resíduos e de combustíveis oferecem ótimos alvos de ataques, particularmente para grupos terroristas. Incerteza que não pode deixar de ser adicionada aos riscos bem mais concretos de segurança operacional, como bem lembram vinte acidentes em reatores desde 1957 (e outros doze de outras fontes de radiação), dos quais os mais sérios foram: Chernobyl (Ucrânia, 26/03/86), Kyshtym (Rússia, 29/09/57), Three Mile Island (EUA, 28/03/79), Tokaimura (Japão, 30/09/99) e agora Fukushima (12/03/11).
Mesmo assim, os entusiastas da energia nuclear alegam que as consequências de Chernobyl foram infinitamente menos importantes do que se imagina, pois o acidente acabou por não alterar as estatísticas relativas à saúde humana, além de ter contribuído muito menos que as atividades sociais normais para a erosão da biodiversidade. Então, perguntam esses entusiastas, se a quarta geração de reatores será incomparavelmente mais segura do que as duas primeiras, o debate sobre a geração elétrica nuclear não se tornaria estritamente econômico?
Antes dele há, contudo, duas outras dificuldades prévias. Primeiro, a divergência sobre o gerenciamento dos rejeitos, mais conhecidos por "lixo atômico". O lado da precaução afirma que até agora não surgiu razoável solução para esse problema, enquanto seus opositores procuram tranquilizar a opinião pública afirmando que o armazenamento é seguro e que existem ótimos planos para a disposição final. Segundo, as tecnologias nucleares difundem na sociedade uma dimensão totalitária, com seus segredos, mentiras e violências, como ressalta André Gorz em seu livro póstumo "Ecológica", recentemente lançado pela editora Annablume.
No âmbito econômico, poderia parecer tranquila a desqualificação da eletricidade gerada por reatores nucleares, pois é muito mais cara do que todas as outras opções disponíveis que quase não contribuem para o aquecimento global: a hídrica, a eólica e as solares. Pior: esse custo só aumenta, na contramão do que tende a ocorrer com todas as demais tecnologias que não envolvem sérios problemas de segurança.
O problema, dizem os defensores da nuclear, é que esses cálculos não incluem todos os custos socioambientais. Se o fizessem, ela se mostraria altamente competitiva, mesmo em relação à hídrica, supostamente baratíssima.
Em suma: só existem mesmo controvérsias quando o tema é energia nuclear, constatação que motivou o livro "Energia Nuclear: do anátema ao diálogo" (ed. Senac), que será lançado amanhã, às 15h, com mesa redonda promovida pelo IEA-USP no auditório do prédio FEA-5.
A favor da opção nuclear falará Leonam dos Santos Guimarães, doutor em engenharia naval pela Poli-USP, professor da FAAP, e assistente do diretor-presidente da Eletronuclear. No contraditório estará José Goldemberg, doutor em ciências físicas, professor e ex-reitor da USP, várias vezes ministro e secretário estadual.
*José Eli da Veiga, professor titular da USP (FEA e IRI) e autor de "Sustentabilidade" (Ed. Senac, 2010), escreve mensalmente às terças.
(Valor Econômico)
Coluna de José Eli da Veiga, publicada no Valor Econômico.
Ninguém discorda da absoluta necessidade de se impedir que arsenais de armas atômicas sejam usados. Mas esse consenso não resiste sequer à proposição de que o melhor caminho para se atingir tal objetivo seja o estrito cumprimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), em vigor desde março de 1970, ratificado por 189 países, com a única deserção da Coreia do Norte, em 1993.
O monitoramento do TNP tem sido relativamente eficaz em conter o número de nações com capacidade bélica nuclear. Principalmente por ter desestimulado a África do Sul e toda a América Latina. Mas esse regime foi incapaz de deter Israel, Índia e Paquistão, além da já citada aventura da Coreia do Norte, mais a atual suspeita sobre o Irã. Só que esse diminuto incremento de potências atômicas não evitou enorme escalada das armas nucleares no interior do "Clube dos 5", formado por Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido.
Pode-se dizer, então, que o TNP é mais um tratado de não proliferação de potências nucleares do que desse tipo de armas. E há quem considere muito melhor essa gradual distribuição geopolítica do poder nuclear do que o estrito cumprimento do TNP. Tese defendida por Kenneth N. Waltz, professor emérito de relações internacionais da Universidade da Califórnia, Berkeley. Frontalmente rebatida, com idêntico poder de persuasão, por seu colega Scott D. Sagan, de Stanford, no belo livro "The spread of nuclear weapons: a debate" (W.W. Norton, 1995).
Óbvia consequência desse debate só pode ser a divergência na estimativa dos riscos para a segurança global decorrentes do maior uso da energia nuclear para fins pacíficos, especialmente para geração de energia elétrica. Quanto aumentará o perigo de uso de arsenais atômicos atribuível às novas 49 centrais elétricas termonucleares atualmente em construção? Zero em países que já são potências nucleares: China (25), Rússia (seis), Índia (cinco), Paquistão (uma) e França (uma). Aumentará, mas quase nada, na Coreia do Sul (seis), Japão (duas), Taiwan (duas) e Finlândia (uma). Panorama que não se altera com a lista das 160 propostas ou projetos de construção até 2020.
Trágico engano, diz o outro lado. Afinal, tanto reatores nucleares quanto seus armazenamentos de resíduos e de combustíveis oferecem ótimos alvos de ataques, particularmente para grupos terroristas. Incerteza que não pode deixar de ser adicionada aos riscos bem mais concretos de segurança operacional, como bem lembram vinte acidentes em reatores desde 1957 (e outros doze de outras fontes de radiação), dos quais os mais sérios foram: Chernobyl (Ucrânia, 26/03/86), Kyshtym (Rússia, 29/09/57), Three Mile Island (EUA, 28/03/79), Tokaimura (Japão, 30/09/99) e agora Fukushima (12/03/11).
Mesmo assim, os entusiastas da energia nuclear alegam que as consequências de Chernobyl foram infinitamente menos importantes do que se imagina, pois o acidente acabou por não alterar as estatísticas relativas à saúde humana, além de ter contribuído muito menos que as atividades sociais normais para a erosão da biodiversidade. Então, perguntam esses entusiastas, se a quarta geração de reatores será incomparavelmente mais segura do que as duas primeiras, o debate sobre a geração elétrica nuclear não se tornaria estritamente econômico?
Antes dele há, contudo, duas outras dificuldades prévias. Primeiro, a divergência sobre o gerenciamento dos rejeitos, mais conhecidos por "lixo atômico". O lado da precaução afirma que até agora não surgiu razoável solução para esse problema, enquanto seus opositores procuram tranquilizar a opinião pública afirmando que o armazenamento é seguro e que existem ótimos planos para a disposição final. Segundo, as tecnologias nucleares difundem na sociedade uma dimensão totalitária, com seus segredos, mentiras e violências, como ressalta André Gorz em seu livro póstumo "Ecológica", recentemente lançado pela editora Annablume.
No âmbito econômico, poderia parecer tranquila a desqualificação da eletricidade gerada por reatores nucleares, pois é muito mais cara do que todas as outras opções disponíveis que quase não contribuem para o aquecimento global: a hídrica, a eólica e as solares. Pior: esse custo só aumenta, na contramão do que tende a ocorrer com todas as demais tecnologias que não envolvem sérios problemas de segurança.
O problema, dizem os defensores da nuclear, é que esses cálculos não incluem todos os custos socioambientais. Se o fizessem, ela se mostraria altamente competitiva, mesmo em relação à hídrica, supostamente baratíssima.
Em suma: só existem mesmo controvérsias quando o tema é energia nuclear, constatação que motivou o livro "Energia Nuclear: do anátema ao diálogo" (ed. Senac), que será lançado amanhã, às 15h, com mesa redonda promovida pelo IEA-USP no auditório do prédio FEA-5.
A favor da opção nuclear falará Leonam dos Santos Guimarães, doutor em engenharia naval pela Poli-USP, professor da FAAP, e assistente do diretor-presidente da Eletronuclear. No contraditório estará José Goldemberg, doutor em ciências físicas, professor e ex-reitor da USP, várias vezes ministro e secretário estadual.
*José Eli da Veiga, professor titular da USP (FEA e IRI) e autor de "Sustentabilidade" (Ed. Senac, 2010), escreve mensalmente às terças.
(Valor Econômico)
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