CRÍTICA HISTÓRIA
Livro de uruguaio é mordaz ao tratar de política, sexo, ciência e religião
ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO, Folha de S.Paulo,15/9/2012 "Quinze de setembro. Adote um banqueirinho! No ano de 2008 a Bolsa de Nova York foi a pique. Os magos de Wall Street, especialistas em vender castelos no ar, roubaram milhões de casas e de empregos. Imploraram uma ajudinha pelo amor de Deus e receberam a maior recompensa jamais concedida na história humana. Essa dinheirama teria bastado para alimentar todos os famintos do mundo, com sobremesa e tudo, daqui até a eternidade. Ninguém pensou nisso."
Esse é o resumo do agudo verbete que o uruguaio Eduardo Galeano preparou para o dia de hoje em "Os Filhos dos Dias". O livro mistura história, política, humor, economia, religião, sexo, ciência e futebol. É um surpreendente calendário heterodoxo.
Autor do famoso "As Veias Abertas da América Latina" (1971), o premiado Galeano, 72, é conhecido pela visão crítica e aguda de seus ensaios.
Como em suas outras obras, nesta mais recente a política é o ponto forte. Mas não só. Lá estão coletados casos de denúncias de discriminação contra mulheres e homossexuais, ataques ao ambiente e descalabros contra pobres e indefesos.
Tudo é editado em 366 pílulas -uma para cada dia de um ano bissexto- em textos curtos ou curtíssimos.
Às vezes as notas têm estilo de almanaque; em outras parecem relatos jornalísticos. De vez em quando saltam poesias e manifestos. É dinâmico e gostoso de ler.
Pelas páginas passeiam Einstein, Picasso, Caruso, Tarzan, Noel Rosa, Tupac Amaru, Rockefeller, Sherlock Holmes, Drácula, Fernando Pessoa, Mark Twain. E informações variadas.
Galeano conta que a soma dos sem-casa chega a um bilhão em pleno século 21. Que até 16 de maio de 1990 a homossexualidade fazia parte da lista de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde. Que só em 2008 os EUA tiraram Mandela da lista dos "terroristas perigosos".
O verbete de 13 de fevereiro narra que em 2008 o menino Miguel López Rocha, 8, brincava nos arredores de Guadalajara, no México, quando caiu no rio Santiago.
"Não morreu afogado. Morreu envenenado. O rio contém arsênico, ácido sulfúrico, mercúrio, cromo, chumbo e furano, jogados em suas águas pela Aventis, Bayer, Nestlé, IBM, Dupont, Xerox, United Plastics, Celanese e outras empresas, que em seus países estão proibidas de fazer esse tipo de doação", escreve Galeano.
BRASIL
Há historinhas brasileiras, como a da inusitada manifestação que ocorreu em Sorocaba (SP) em 8 de fevereiro de 1980. Era tempo de ditadura, e uma ordem judicial proibia beijos que "atentavam contra a moral pública" -como os "no pescoço" e os em que "as mucosas labiais se unem numa insofismável expansão de sensualidade". Em protesto, a cidade se transformou em um enorme beijódromo.
Muitos verbetes tratam das tragédias das guerras. Lembram da destruição das bibliotecas de Alexandria (em 47 aC, por Júlio César) e de Bagdá, quando os EUA invadiram o Iraque. E o autor recorda a incrível "biblioteca andante" de um grão-vizir da Pérsia no final do século 10. Para escapar de guerras e incêndios, Abdul Ismael fez quatrocentos camelos carregarem seus 117 mil livros.
No dia internacional do direito à informação (28 de setembro), Galeano relata que logo após o lançamento das bombas atômicas no Japão, em 1945, o "New York Times" publicou artigo de William Laurence, um redator especializado em ciência, afirmando que não havia radiação em Hiroshima e Nagasaki; que a radioatividade era uma "mentira da propaganda japonesa".
Laurence ganhou o Pulitzer. Mais tarde se descobriu que ele estava na folha de pagamento do orçamento militar dos EUA.
OS FILHOS DOS DIAS AUTOR Eduardo Galeano EDITORA L&PM TRADUÇÃO Eric Nepomuceno QUANTO R$ 49 (432 págs.) AVALIAÇÃO |
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