Valor, 3/9/2012
Chances de um jovem brasileiro morrer assassinado são maiores hoje do que há 30 anos
Chances de um jovem brasileiro morrer assassinado são maiores hoje do que há 30 anos
O Brasil convive, tragicamente, com uma espécie de epidemia de indiferença, quase cumplicidade de grande parcela da sociedade e dos governos, com uma situação que deveria estar sendo tratada como uma verdadeira calamidade social. Em 2010, 8.686 crianças e adolescentes foram vítimas de homicídio. Estamos falando ao equivalente a cerca de 43 aviões da TAM, como o do trágico acidente em 2007, lotados de crianças e adolescentes.
De 1981 a 2010, o país perdeu assassinadas 176.044 pessoas com 19 anos ou menos, sendo que meninos representam em torno de 90% do total. Esses dados horripilantes nos alcançaram mais uma em meados de julho, quando foi divulgado o Mapa da Violência 2012 - Crianças e Adolescentes do Brasil, do pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz, coordenador de Estudos sobre a Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil. Os dados e análises compilados sistematicamente nos últimos anos pelo Mapa revelam um cenário de dor e horror que não tem obtido a atenção que merece na sociedade brasileira.
Passados mais de uma década de governo do PT e mais de trinta anos de regimes democráticos a área de segurança pública permanece praticamente intocada. Arraigada em um modelo arcaico que não apenas relega aos Estados o grosso das responsabilidades com a implementação das políticas de segurança e que mantém um arcabouço institucional de polícia militarizado que penaliza a sociedade e, em última instância, os próprios profissionais do setor: mal remunerados, mal treinados e sistematicamente desvalorizados. Uma das consequências são os índices de violência e homicídios associados as más práticas da polícia. Somente no Estado de São Paulo, onde a taxa geral de homicídios voltou a subir depois de um período de queda, a polícia matou nos últimos cinco anos nove vezes mais que o total de mortes decorrentes da ação policial em todo os EUA.
A taxa de homicídios na população entre 0 e 19 anos em 1980 era de 3,1 para cada grupo de 100 mil. Em 2010, foi de 13,8
O exemplo mais recente desse descaso do Estado brasileiro em relação a gravidade do tema foi a notícia divulgado ao final do ano passado que o tão esperado Plano Nacional de Redução de Homicídios havia sido engavetado pelo Ministério da Justiça por orientação expressa da presidente Dilma, que preferia concentrar esforços na ampliação e modernização do sistema penitenciário, no combate ao crack e no monitoramento das fronteiras, adiando mais uma vez a abordagem integrada do problema. Em fevereiro deste ano o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou que a redução dos homicídios seria uma prioridade do novo Plano Nacional de Enfrentamento da Violência. Infelizmente muito pouco e muito tarde para um problema que se repete todos os anos e para o qual não faltam análises, diagnósticos e propostas colocadas em diferentes graus em debate e experimentadas em pequena escala ao longo das últimas duas décadas.
As chances de uma criança ou adolescente brasileiro morrer assassinado são maiores hoje do que eram há 30 anos, colocando o país na quarta pior colocação numa comparação com outros 91 países. Em 1980, a taxa de homicídios na população entre zero e 19 anos era de 3,1 para cada 100 mil pessoas. Pulou para 7,7 em 1990, chegou a 11,9 em 2000 e alcançou 13,8 em 2010. Um crescimento de 346,4% em três décadas, em contraste com a mortalidade provocada por problemas de saúde, que teve queda acentuada. Quando considerada toda a população, a taxa de homicídios em 2010 foi de 27 por 100 mil habitantes. Considera-se que há uma epidemia de homicídios quando a taxa fica acima de 10 por 100 mil.
De fato, o Brasil é o país com o maior número bruto de homicídios no mundo, ocupando o sexto lugar quando considerado a proporção em relação ao tamanho da população do país. E os jovens, em sua maioria crianças e adolescentes, meninos, ocupam uma parcela desproporcional dessas mortes, sem que isso vire um escândalo público nacional. Passado o momento da divulgação dos dados voltamos a situação de quase inércia em que as medidas tomadas não incorporam o sentido de urgência e emergência que a questão merece.
O fim trágico da vida desses jovens vem acompanhado da anulação simbólica de suas histórias, a dor das famílias e dos amigos ignorada, sonhos e trajetórias de vidas suprimidos. Isso ocorre devido à naturalização da violência e a um grau assustador de complacência em relação a essa tragédia. É como se estivéssemos dizendo, como sociedade e governo, que o destino deles já estava traçado. Estavam destinados à tragédia e à morte precoce, violenta, porque nasceram no lugar errado, na classe social errada e com a cor da pele errada, em um país onde o racismo faz parte do processo de socialização e do modo de estruturação do poder na sociedade.
São jovens submetidos constantemente a um processo que os transforma em ameaça, os desumaniza, viram delinquentes, traficantes, marginais ou, às vezes, nem isso, apenas vítimas de um contexto de violência e discriminação em relação ao qual a sociedade prefere virar às costas e olhar para o outro lado, com raras exceções.
É preciso quebrar esse padrão de violência e indiferença e compreender que o país está perdendo o melhor da sua juventude. Esses meninos não estavam destinados a morte violenta, mas sim a serem médicos, artistas, engenheiros, professores, filhos e pais, avôs e presidentes da República.
Precisamos criar alternativas, abrir canais de conversação na sociedade sobre essa tragédia, combater a violência armada, inclusive policial, estabelecer instrumentos de participação e controle cidadão sobre o desenho e implementação das políticas públicas de segurança. Reconhecer que isso é uma questão nacional, um problema do estado e central à consolidação da democracia. Precisamos quebrar a apatia, o silêncio e a cumplicidade passiva com o extermínio dos jovens brasileiros.
Atila Roque é diretor executivo da Anistia Internacional Brasil
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A taxa de homicpidios na população entre 0 a 19 anos em 1980 era de 3,1 para cada grupo de 100 mil. Em 2010, foi de 13,8
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